Percalço

Entre sair e ficar, um salto vermelho embebido na poça da água mais turva. Na calçada, calada, diante da injustiça de um só pé mergulhado, coloquei o outro, afundando o salto e encharcando a meia-calça que tomou uma coloração cinzenta. Agora sim, com direitos iguais, meus dois sapatos adormeciam naquele líquido que desceu das nuvens numa tarde de outono e decidiu se consolar nas margens da calçada da Casa de Cultura.

Olhei para os meus pés submersos e acendi um cigarro. Assoprei a fumaça das minhas incertezas e olhei nos olhos do meu reflexo com um sorriso no canto da boca e um piscar de calafrios: Quem é essa mulher que se permitia afundar em uma poça em um dia de chuva? A mesma que amou o moço que fazia versos e tinha medo.

Eram passos sincronizados pelo tempo, até que a torpeza do entusiasmo deu lugar a um sorriso triste e o coração de quem rimava virou um enfadonho saco de amarguras amalgamadas. Temia o vento, as constelações, as ausências métricas e os suspiros. Depois impediu olhares, justificando as suas dores por outras que já passara.

Amar dói e acaba

melhor que seja assim

me ama e me entrega tudo

e eu, só o pouco que cabe em mim.

Não se sentiriam díspares, como nós. Ambos molhados e desconfortáveis, mais iguais. Era o que referia todas as vezes que insisti que o amor não tem só rimas poéticas. As relações exigem, além da coragem da vida um sentir de imersão, com a garantia de desejos apregoados e selecionados com a mesma atenção e com idênticos riscos – inundarem-se um no outro ou pegar leptospirose.

E a água de entrega limpa

virou turva com os pés no chão

O poeta me tirou os sonhos

quando não me segurou pela mão.

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