Não se deve julgar um livro pela capa, diz o ditado. E a pessoa por seus sapatos, seria legítimo julgarmos? Antes de tropeçar nas inevitáveis armadilhas nascidas com os caminhos propostos por este texto, parto de um consenso: calçados dizem ainda muito mais sobre nós do que as capas sobre os livros. Desde sua escolha, ou seja, antes de usarmos, até seu estado de conservação, tudo ali manda recados para quem estiver atento.
Por exemplo: quais mensagens nos chegam de um par de surradas botinas? Suponho que a primeira ideia seja a de vestir um trabalhador braçal (perdão se aqui pareço trocar os pés pelas mãos). Alguém cuja rudeza da lida imponha ao calçado uma vida cheia de percalços e lhe cobre resistência acima da estética. Os vincos no couro bruto serão uma antecipação do que se espera da face do trabalhador quando o tempo de vida de ambos estiver próximo do final.
No extremo oposto, o brilho imaculado de um scarpin explana uma posição social de privilégios explícitos – não houve, há ou haverá em seu caminho pedra solta, intempérie, esforço físico ou risco. Trabalho, se ou quando existir, apenas intelectual. Tanto quanto os sinais do tempo serão retardados na cútis de quem calça este sapato, ele mesmo terá cuidados de flanelas, uma vez que eventuais defeitos serão ruídos inadmissíveis ao recado – recato? – proposto.
No meio do caminho, pisamos todos no enorme terreno das suposições sobre nossa personalidade, ocupação ou status. Num país até ontem descalço, jamais faltará quem olhe com admiração ou desprezo para um sapato bem ou mal apresentado: dependendo do que se espera de seu dono, ser e estar de uma ou de outra forma poderá denotar ou esconder inconformidades. Nobre é o esforço próprio? Que bênção ter os calçados puídos! Nobre é o esforço alheio? Que maravilha ostentar um verniz sem máculas!
O antigo ditado da capa do livro, como de costume, pode ser lido de múltiplas formas. Na minha interpretação, fala de preconceitos e dos perigos que eles representam. Julgamentos prévios ou superficiais são arriscados e, não poucas vezes, injustos. Transposto para os calçados, penso que eles revelam uma sinceridade quase inescapável – queiramos ou não, lá estão nosso status, ocupação e personalidade servindo de base. Assim, pé por pé, sua ventura será menos dizer sobre quem somos e mais sobre quem nos julga.