Se existe um lugar onde vivemos o presente é a rua. Em casa, relembramos o passado, projetamos o futuro, mas não saímos à rua sem um propósito que nos faça viver o agora. Ela serve de palco para performarmos os mais diversos papéis. Sempre haverá um cabelo roxo a caminho da escola, um bebê passeando no carrinho, um executivo de patinete que esperamos que saiba aonde vai.
E se existe uma expressão artística que traz a plateia para o presente é o teatro. Ensimesmados ou agitados, precisamos nos concentrar na performance, sob pena de jogar fora o preço do ingresso. Se o teatro for bom, não faremos grande esforço, porque produção – da qual o cabelo roxo é assistente –, figurino, cenário, atores – ainda que a protagonista tenha acabado de amamentar o bebê –, iluminação, música, cena; terão se encarregado de trazer o executivo de patinete – que cansou das planilhas e comprou o ingresso – para o aqui e agora. E, mais do que isso, para dentro do palco. Assim, o executivo viverá um momento de intensificação do presente, talvez catártico, certamente distante da sua rotina.
Mas se, por acaso, o executivo não for arejar a cabeça no teatro, ainda poderá ser provocado pela arte de rua. Passava ele de patinete pela Lima e Silva em Porto Alegre, quando viu o grafite de um homem negro, maquiado, de turbante vermelho, sob um arco-íris. Mas o que lhe chamou a atenção foi o dizer ao lado: “Sou uma mulher com pouca maquiagem, mas que sabe usar os talheres”. Frase de efeito que, de início, não entendeu. Depois se questionou se ele mesmo sabia manejar os talheres. Mas não era só isso. Teve certeza de estar diante de um grande personagem da cidade. Parou na calçada e jogou a frase no google.
Apareceu uma matéria ilustrada pelo grafite à sua frente: Nega Lú foi um homossexual negro que agitou a vida boêmia de Porto Alegre entre 1970 e 1990. Nascido Luís Airton em família de classe média baixa, no Menino Deus, assumiu-se Nega Lú no curso clássico. Cantava na escola e depois no coral da UFRGS. Estudou francês, balé, deu aulas de etiqueta, e passou para os sobrinhos a ideia de que uma pessoa negra deveria ter leitura e boa conversa para ser respeitada na sociedade. Tornou-se conhecido ao frequentar os bares da Esquina Maldita, onde embalava as madrugadas cantando Summertime em cima do balcão. Enquanto lia, um bebê chorando no carrinho passou pelo executivo. Mas ele estava concentrado em saber que Lú se vestia de homem, a não ser no Carnaval, quando se fantasiava de mulher para empunhar a bandeira do Bloco da Saldanha. Um cabelo roxo atravessou a rua elevando as mãos aos céus ao olhar para Nega Lú. Ao final da matéria, o executivo descobriu que ela morreu desempregada, de um ataque do coração.
Diante de toda a epifania, fez uma foto do grafite multicores. Mas tudo tem um lado B e, antes de seguir sua vida de patinete, transformou Nega Lú numa fotografia em preto e branco.