Nega Lu na Cidade Baixa

O Bonfim dos anos 1980 era o ponto de encontro da rebeldia, do congraçamento das espécies, da transgressão de valores. Passar pela Osvaldo Aranha à noite, na esquina com a Sarmento Leite (Esquina Maldita) ou nas proximidades do Escaler, só nos dava duas opções: acelerar o passo, buscando fugir do bulício, ou diminuir a marcha e se entregar ao clima frenético.

Uma figura constante nesse cenário era Nega Lu, que se autodefinia “pobre, preto e puto”. Apesar de ter nascido e vivido no Menino Deus, foi na efervescência do Bonfim que a personagem encontrou o cenário adequado para suas performances musicais e teatrais nas noites do Alaska, da Lanchera e do Ocidente.

Estudou na Aliança Francesa, aprendeu balê clássico e, com sua bela voz grave, foi solista nos corais da Ufrgs e da Ospa. Artista de tantos talentos, era na noite que gostava de exibir sua imagem de bicha louca. Desbocada, irreverente e irônica, arrancava risos e aplausos de uma plateia dominada por sua presença sempre bem-vinda.

Nos últimos anos, a boemia da capital instalou-se na Cidade Baixa, bairro onde convivem as mais diversas tribos, com suas ruas em que se pode sentar na calçada de um bar e ficar apreciando por horas o desfile dos tipos mais singulares: o jovem que sai da academia e passeia sua autoconfiança com seu shortinho bem curto; a dama velhíssima e muito maquiada que acomoda a bengala na mão direita e, com a esquerda, arrasta a cachorra também velha e alquebrada, que a todo momento pede descanso; o vendedor de queijos e linguiças que, sem discrição, oferece seus produtos entre as mesas dos bares.

Nega Lu, que morreu em 2005, foi homenageada este ano com um painel na Lima e Silva, na Cidade Baixa. Onde mais ela estaria hoje, compartilhando suas extravagâncias e deboches? Onde mais teria um palco à disposição para exibir seu talento? A Cidade Baixa comporta todos os tipos, todas as individualidades e peculiaridades de uma população específica da capital.

Uma tarde dessas, caminhando pela República, passou por mim e seguiu à minha frente um jovem vestido com uma longa túnica amarelo-ouro, várias pulseiras nos braços e longos cabelos rastafári encimados por um lenço colorido. Na mesma calçada, na direção oposta, vinham uma mãe e o filho de uns cinco anos. A criança olhou para o rapaz e continuou conversando com a mãe, sem sinal de surpresa. Pensei comigo: que maravilha poder criar um filho num bairro em que a diversidade é algo costumeiro!

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