Descalçados

Ao lado do tênis velho e roto, muito roto, a criança dorme. No centro da cidade a noite é fria e barulhenta – há gritos e buzinas em profusão. O papelão que serve de colcha está úmido, mas combina com a coberta maltrapilha. Quando ele acordar, vai calçar o tênis velho que achou numa lixeira de resíduos orgânicos – procurava comida –  e vai perambular, mãe e irmãos menores a tiracolo, atrás de migalhas que lhes garantam, ao menos, mais um dia.

Ao lado da chinela sem uma das tiras, que descansa no chão árido e pedregoso, a mulher empoeirada observa a fila d’água, enorme, esperando sua vez. Falta chuva na região, e pra cozinhar a pouca comida que ainda resta em casa, só caminhando oito horas por dia até a cisterna. Na volta de tantas ladeiras, de braços esmorecidos, ela agradece seu Deus – pelo menos não é mais um barreiro, como antes – já que dos políticos desistiu, há tempos. Enquanto Ele não atende, ela segue, com sede e fé.

Ao lado da chuteira cheia de furos, o menino aguarda uma oportunidade. No campo de terra batida, uma clareira na savana, a bola – um saco de plástico atado com corda – corre de lá pra cá entre o pó e o barro. A grama é escassa, quase não tem, mas os sonhos brotam num simples drible, a cada bom passe. A maioria deles tem os pés pelados, uns tem sandálias, outros, arremedos de tênis. Depois do jogo, voltarão para casa, vão ajudar o pai na lavoura clandestina ou na mineração artesanal. É bem cedo, ainda.

Ao lado do par de sapatos esgarçados e sujos, o homem contempla o aniquilamento do seu pedaço de chão, o qual sonha um dia ser Estado, por direito – só isso. Ali perto uma bomba caiu há pouco. Entre o terror e a política, há morte por todos os lados. Sem saber o que é pior, ele reza de pé diante da mesquita, pedindo pão, água, remédio e paz.

Do outro lado, os donos do mundo se fecham. Recebem, nos salões, palácios, senados e câmaras de lordes, apenas os lambedores de sapato – e, eventualmente, um engraxate mal pago. Enquanto isso, ricos entediados compram calçados “full destroyed” da marca Balenciaga, dez mil reais o par – no marketing de mau gosto, basta dissimular empatia e mimetizar o mundano. Aceitação e likes garantidos, ainda que estúpidos.

Diante desta fotografia triste, deste deplorável big picture, resta a pergunta: calçar os sapatos alheios ou permanecer descalço, caminhando sobre cascalho? Antes de responder, repara bem nesse mundo roto, árido e sujo – que não é distante. Ele está logo aí, ao seu lado.

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