Já havia lhes remetido a ideia do incêndio. Ninguém acreditava que pudesse vir, e tão perto. Agora, a olho nu, o vasto havia se erigido. Não exatamente ele, mas o seu depois, o seu amanhã de ontem, a trágica visão da ausência.
Ainda crepitava e cerzia nuvem causticante, incerteza e desconhecimento. Chegara a hora de recolher o que sobrou. Não era água, nem chuva. Foi raio e relâmpago, aquele de tremer a cerca do gado, aquele de assaltar a respiração e remexer menino na cama. A vez era de se despedir.
Quando escutou já era passado das duas da manhã. Tão lindo a noite virar dia. Magnetizada, faiscava olhos e brilho, suor e sangue escorrendo pelas narinas. Adrenalina sem escape, frio do desfalecimento, o grito quente, sufocado, o terror. O epílogo antes do auge.
Onde poderia estar? Guardou naquele mesmo lugar de sempre, na segunda prateleira da cristaleira do terceiro andar da casa, no quarto da despensa. A memória não a traía, pois tudo fulgurava vivo em sua mente. Apenas ela que restara.
Sirene. Sirene. Sirene. Silêncio. Gesto que despenca, ombro que não sobe, rumor ao longe, não se sabe de quem, do quê, não se vê. Evacua, o vácuo, o vão, vai. Alçapão, esconderijo, o que se espera dele, o que se aguarda ali. Quem sabe um dia, quem sabe o mundo, quem sabe…
Volta. Procura. Em vão. Onde? Barulho? Silêncio. Medo, e se… ninguém. Em vão. Ouça, rumores, sirene, sirene, sirene. Silêncio. Algo cai, um ranger, escombros por toda a parte. Procura, procura, escuta. Quem sabe ali, quem sabe antes, quem sabe…
Dois. Um par, uma criança, uma lembrança.
Um fiapo, a comida no prato, o resto da geladeira, os saques a salvariam por algum tempo. Saramago estaria certo, caminharíamos soturnos, sem olhos de futuro, a garganta apertada, insones. Como crer no cessar armas? Como virar a esquina e saber o que nos aguarda? Nos guetos nos enfileiraram, nos rotularam, nos despiram.
– Alguém?