Sou apenas um sapato. Ou melhor, um par de sapatos. Nasci numa oficina de 2×2 metros, na periferia da cidade. Poderia ter sido vendido numa bonita sapataria. Mas foi numa feirinha por ali, que o João me comprou. Ele mesmo, o João Coringa. Falou que pegou este apelido porque queria ser importante. Fazer e desenvolver muitas habilidades. Era alto e magro. Mas também muito forte. E de pouca fala. Quando sua mãe morreu, teve de trabalhar. E apenas conseguiu um emprego na pedreira perto da sua casa. Virou quebrador de pedra. Mas ganhava um pouquinho de dinheiro. Já dava para casar com a Fatinha. Ela morava bem perto, também. E aí se juntaram, morando na mesma casa. Tudo nas redondezas.
Agora ele tinha sua paixão junto dele, a Fatinha. Ela era graciosa, mas pequena e magrinha. João pensou em ter filhos. Mas ela não queria. Era muito encucada. Achava que se engravidasse iria explodir. Tinha suas manias. Não teve jeito. Ele não era de reclamar. Trabalhava duro. Voltava para casa, e podia tomar um banho e comer bem. Me jogava num monte de coisas velhas nos fundos da casa, para me calçar no dia seguinte. Nada de armário bonito. Nem me engraxava. Me deixou desbotar.
Toda noite, depois de jantar, encostava na mulher para assistir novelas, que era a paixão dela. Ficava calado. Era sempre assim. O dinheiro era curto. Não dava para fazer outras coisas. Às vezes sobrava para ele ir ao boteco e tomar uma cerveja. Sozinho. Ficava olhando as conversas dos outros, pensativo. Depois, voltava para casa, na mesma rotina. Eu já estava bem acostumado. Sem novidades. Jantar e assistir a novela na velha televisão. Depois dormir.
Pois assim eu nunca pude passear. Conhecer outros lugares. Nunca me molharam na água salgada do mar, que ouvia falar. Então, se a vida é caminhada, vivi pouco! O João também. Nunca coringou! Nem me calçava direito. Só enfiava o pé. Fiquei assim, dobrado!
Num sábado à tarde, voltou na pedreira. Subimos lá no alto. Ele me largou e sumiu! Só vi o grito. Nunca mais ele apareceu!