A cartinha

Sou o nono filho, caçula, nascido e criado num assentamento desprovido de água potável e saneamento básico. No seio da minha humilde família, todos colaboraram para manter nosso lacônico lar em ordem. Mamãe, muito indulgente, com voz ternurosa, solicitava minha ajuda para lavar os tapetes. Sempre dizia ter sequelas na coluna lombar, provocadas, pelo que entendia, por “atos beligerantes” – acho que é esse o termo.

Há uma tradição familiar: herdar roupas e calçados dos irmãos mais velhos. Brinquedos? Nunca tivemos. Brincávamos com o que encontrávamos pelos becos, de pneus a papelões. Ia na escola improvisada, com professores voluntários, que se esmeravam para ensinar, mesmo no calor sufocante sob as lonas pretas. Gostava das aulas, mas não tinha amigos pois era zombado por usar roupas e meu único par de sapatos, obviamente, maiores que eu. Os colegas me chamavam jocosamente de Sarah.

Certa vez, fui à aula de camiseta de manga longa vermelha, com punhos e bainha branca, que alcançavam os joelhos. Pronto! Me apelidaram de “papai noel”. Perguntei para a professora quem era esse papai. Ela me explicou que era um velhinho generoso que distribuía presentes para as crianças boazinhas, bastava mandar uma carta. Pensativo e receoso, fui para casa. Como precisava ser um menino bonzinho, disse para mamãe que, a partir daquele dia, lavaria e estenderia os tapetes no pátio coletivo. Depois, peguei um pedaço de papel e escrevi:

Senhor Papai Noel

Meu nome é Caleb, tenho 9 anos e minha família é muito pobre.

Gostaria de pedir alguns legumes e farinha para termos pão e sopa, nosso alimento diário.

Se não for abuso, peço um sapato que caiba em meus pés, para que eu consiga chutar bola sem que eles caiam. Sou um menino obediente, que gosta de estudar e ajudar em casa.

Vou aguardar ansioso.

Quando terminei de escrever a cartinha, entreguei ao meu irmão que a levaria para o serviço postal da cidade. Naquele momento, ouvi sons abafados e distantes. Espiei pela janela e pude ver um clarão. Fiquei apavorado! Mamãe veio, me abraçou, e clamou que todos deveriam sair de casa imediatamente. Falou que aquilo era o fadado ato beligerante.

Tomado pela surpresa e horror, avistei aviões, bombas, e muitos soldados vindos em nossa direção. De tão atordoado, percebi que estava descalço. Meu irmão Saul não estava conosco. Fora levar minha correspondência, tendo sido atingido nas costas por vários tiros. Quanto a nós, conseguimos chegar em segurança no vilarejo próximo e fomos socorridos.

Hoje, sou fotógrafo de conflitos armados. Decorrido tanto tempo, resolvi revisitar o lugar que cresci. Com o coração destroçado, encontrei um cenário devastado. Mas algo me chamou a atenção. Encontrei meu antigo par de sapatos, solitários, em meio aos destroços de uma guerra interminável.

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