Vidas que passam

A primeira vez que a encontrei foi no parquinho de areia do bairro, na nossa cidade natal. Não sabia, confesso. Essa informação veio junto com uma fotografia já envelhecida que minha mãe resgatou, um registro diferente das fotos antigas tradicionais, sem poses ou cenas montadas. Mostrava, tão somente, uma mãozinha de criança, meio gordinha, chafurdando uma areia suja de folhas e pequenas pedras. À sua volta, aparentemente ignorados, alguns brinquedos de plástico. Tentativa artística? Um clique acidental? É a mão dela, disse a mãe.

Depois que sua família se mudou, nossas cartas e ligações foram minguando. Logo nós, melhores amigos na adolescência – um grude só, diziam. Na rodoviária, quando de sua ida, fiz promessa de menino, jurei que um dia iria para onde ela fosse, sem demora. Ela disse que esperaria. Passou muito tempo, nunca fui. Dez anos atrás nos falamos. Um telefonema que iniciei e não terminei bem. Você ainda está aí? A voz dela insistia. Não respondi. Desliguei. .

Dias atrás a localizei numa dessas redes sociais. Era noite, mostrei a fotografia, ela sorriu, gostou, mas não se lembrava também. Rimos de nossos rostos já quarentões, ela mantinha a beleza dos doze, treze, eu um pouco mais enrugado. Falamos de vida, distância, carreira – ela queria ser jornalista, acabou se tornando uma escritora de relativo sucesso. Me mostrou seus livros. Prometi ler. Contei que, diferente dela, permaneci por muito tempo ainda na mesma cidade, saí há pouco. Minhas raízes eram mais fortes que as suas, brinquei. Meus sonhos eram mais urgentes que os seus, ela devolveu. Touché. E mostrou uma foto emoldurada da família, ela, duas crianças pequenas, o marido. Dentro do que me coube, estou bem feliz, revelou. Inadvertido, segui meu roteiro, propus visitá-la, tinha assuntos, coisas a revelar, as mesmas que, dez anos atrás, não consegui. Porque você não diz agora? A resposta veio, ensaiada: Prefiro pessoalmente, pode ser? O sim foi suspirado e, num tom desiludido, ela me passou seu endereço. Ao fundo, um choro de criança chamava nossa atenção. Ela se despediu: Foi muito bom te ver, depois de tanto tempo. Desejei bom resto de noite e acenei timidamente. Boa semana. Ela fechou o notebook.

Hoje, no meu quarto de hotel, a única luz vem do luminoso do lado de fora. Deitado, assisto no teto um slideshow de fotografias imaginárias e atemporais. Aquela com a mão gordinha. Outra dela, na rodoviária, que eu carrego na carteira. A foto de dias atrás, com a família. Aquela noite foi a última vez que a procurei.

Texto livremente inspirado no filme Vidas Passadas (Past Lives), dirigido por Celine Song. Desde já um dos melhores e mais belos filmes de 2023. Não percam.

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