Só ia na feira comprar alfaces

Fecha a porta do apartamento bem devagar para não forçar a mão machucada. Já o corte na cabeça com curativo improvisado é escondido por um chapéu. Mesmo que lento, o bater da porta retumba no corredor gelado, longo e estreito. As paredes de azulejo antigo verde claro e o chão com lajotas pintadas em verde e branco suavizam a arquitetura prisional. Desce as escadas caracol; rotina hipnótica antes que os barulhos da rua a despertem para – o que ia fazer mesmo?

Ah! As alfaces. As da feira são as melhores…

O mormaço da rua àquela hora da manhã a deixa meio mole e parece que tudo está gelatinoso em sua mente, como se a pancada e o calor desintegrassem o cérebro.

Ia só na feira comprar alfaces. Depois as iria lavar, preparar a mesa para o almoço dos dois, como faz todos os dias. Iria mascar as folhas, triturar as horas violentas e engolir a vida no vaivém da feira, no abre e fecha da porta, no sobe e desce da escada caracol.

O pequeno barco balança levemente e deixa um rastro de espuma para trás.  Coloca a mão na água salobra que a massageia, fechando feridas.

Agora livre de feiras e alfaces.

P.S. Segundo o Anuário de Segurança Pública, no ano de 2022 o RS foi o quarto Estado em número de feminicídio (110), atrás somente de SP, MG e RJ. Também segundo a Diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher (Dipam), há 90% de subnotificação dos casos de violência contra a mulher – as agressões que antecedem o feminicídio.

1 comentário em “Só ia na feira comprar alfaces”

gostou? comente!

Rolar para cima