Seu nome era Flor – Giancarlo Carvalho em foto de Carlos Eduardo Vaz

Seu nome era Flor

– Você não vai limpar de vez essa mesa, Alfredo?
– …
– Já se passaram duas semanas, homem. Uma hora você vai ter que fazer isso.
– …

O nome era Flor, sim, Flor porque a mãe gostava, o pai também, as tias nem tanto, achavam coisa de hippie, mas a mãe queria e pronto, ficou Flor, que – como não? -, gostava de flores e plantas, e da mãe e do pai e das tias fofoqueiras que davam notícia de tudo na comunidade, que amanhecia sempre com um galo cantando ninguém sabia direito onde fazendo coro com o sino da Igreja no coração do morro, ao lado do terreiro do pessoal do candomblé e seus búzios e batuques, sons de fé, de crenças que fazem bem acreditar, de filhos de qualquer Deus, como Flor, que acordava cedo para ir à escola, beijava a mãe e o pai que só veria à noite, eles cada um com dois empregos, ela quase adolescente, nem moça ainda mas que já sonhava estudar botânica, parecia lindo conhecer toda aquela miríade de vida verde e colorida, aprender, ensinar, curar jardins e as plantinhas que tem no quintal da mãe e do pai, que chegavam tarde mas já com a comida pronta na mesa, Flor cozinheira de olhos grandes, muito azuis, e mãozinhas ágeis e ásperas de quem muito trabalha, limpa o chão, lava a louça, pendura a roupa no varal franzino do quintal da família, que de pobre só tinha o bolso mesmo, gente que Flor amava e queria ajudar mais e para sempre, sendo gente que lê, que ensina, que ama pai, mãe, planta, flor, tia fofoqueira, vizinho atencioso que cuida a casa quando ela precisa sair, mas só depois da louça limpa, da poeira espanada, do jardim bem regado onde brotavam margaridas, rosas, orquídeas e petúnias, buquês completos com crepom e fita na base, um juntado de pétalas, corolas, pedúnculos, néctar – Meu Deus, quero saber sobre tudo isso de cor e salteado quando crescer! -, montados para vender no trânsito ou no bar ali perto da praia – Bom dia, seu Alfredo! Bom dia, Flor! -, onde muitos apressados almoçavam engolindo, carentes de cor e perfume para animar o horário, o dia, os difíceis tempos de ultimamente – Compra um buquê pra sua namorada, moço. Não é namorada? Não faz mal, amiga bonita também merece! – segue a luta, com fé e flores brancas,  vermelhas, amarelas ou lilases de tez delicada como o doce de uva que a mãe fazia antes, que agora traz água na boca da moça enrubescida, que sorri para a Flor que balança o buquê, que chove pétalas na mesa, coisa de criança, esperta sem maldade sem malícia sem vivência, coisa de criança que não percebe o barulho agudo da sirene, o grito dos pneus, o desespero, as balas que trespassam, perdidas de encontro a ela, cruéis, vindas de armas em alta velocidade, coisa de adulto, sem lei, sem lado, sem se importar com o seu Alfredo agachado atrás do balcão, com os clientes debaixo de mesas, com os transeuntes de cara na calçada, movimentos sincronizados de sobrevivência, lugar comum na bela capital, de manhã, de tarde, nas noites, no centro, nos bairros, nos prédios vistosos e nas casas simples, no morro, no jardim onde a menina mal cresceu com suas plantinhas, com as rosas e margaridas, com as orquídeas e petúnias, com a mãe, com o pai. Com o sonho.

– Ela queria ser professora de plantas.
– Quem, Alfredo?
– A Flor.
– …

Texto produzido na Oficina Santa Sede – Módulo Mosaico, em 15/10/2019
Foto de Carlos Eduardo Vaz

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