Robert Grace por Maristela Rabaiolli

Encontro inusitado

Maristela Rabaiolli

Debulhar o trigo, recolher cada bago do trigo,

forjar no trigo o milagre do pão, e se fartar de pão”

Milton Nascimento

– Quando as pernas são bonitas, qualquer vestido serve – disse a mulher atrás de mim, quando andava pela Independência. Virei-me e vi uma mulher bonita, de meia-idade, simpática. Usava óculos escuros fora de moda, de modo que não pude ver seus olhos. Falava comigo como se me conhecesse há anos. Perguntou pra que lado eu ia. Indiquei. Como ela me pareceu amigável, disse que a acompanharia uma quadra mais, assim poderíamos conversar um pouco.

Enquanto seguíamos pela avenida, percebi que ela não usava protetor facial, item indispensável em tempos de Covid-19. Intrigada, perguntei o motivo. A resposta foi imediata: “Sou médica, médicos não usam protetor facial. Tira, tira o teu também”. Ao falar, fez um movimento brusco na tentativa de tirar minha máscara, mas me afastei a tempo de impedir seu gesto. Apesar disso, segui em frente, pois, nesse momento, ela já havia me dado o braço, e andávamos como velhas amigas.

Na sequência, a mulher, que mais tarde disse seu nome, mas eu não me lembro, nem quero, desandou a falar. Comentou que era médica pediatra e nutróloga, formada em Pelotas, se não me falha a memória. Diante da minha insistência em saber por que não portava o acessório de proteção, disse que não usava porque o vírus Sars-CoV-2 era uma invenção comunista para destruir o planeta. Questionei-a sobre as mortes, ao que ela respondeu que tudo não passava de invenções, que tinha uma amiga que morava em Milão e que lá os hospitais estavam vazios, mas o governo italiano mentia afirmando o contrário. Falava tanta asneira que não sei como tive ouvidos, ou melhor, estômago, para suas bobagens.

Enquanto ela delirava, eu pensava em uma forma de me livrar daquela situação embaraçosa. Arquitetei mil coisas: dizer que era candidata a vereadora pelo PCdoB, que era professora e não comungava com suas ideias; que era progressista. Mas nada me ocorria. Finalmente consegui me desvencilhar da mulher dizendo que precisava me despedir e voltar pra casa, pois tinha compromisso. Antes disso, ela anotou, num pedaço de papel, nome, telefone e e-mail. Assim que virei as costas, obviamente, joguei o papel na primeira lata de lixo que encontrei. É nesse lugar que deve ficar o nome de pessoas que acreditam que a terra é plana e que o comunismo vai destruir o planeta.

Voltei pra casa pensando: quem dera eu tivesse, além de pernas bonitas, o dom que tem o sacerdote de, durante o ritual da Eucaristia, transformar pão e vinho em corpo e sangue de Cristo. Se eu tivesse semelhante capacidade, poderia, quem sabe, como num passe de mágica, colocar naquela mente desvairada um pouco de lucidez. Para juízos assim, pernas bonitas e vestido barato é luxo. Porque cérebro inteligente, de fato, não é pra qualquer um.

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