Pelo não dito

Uma libélula pousou na minha perna, dormiu comigo naquela noite. Quando o dia clareou ela ainda estava lá, balançando as asas e olhando para mim. Na hora senti uma repulsa, parecia mesmo que ela não devia estar sobre a minha pele. Achei feia e estranha. Não gosto tanto de insetos e não tive coragem de tirá-la com as mãos. Pensei que podia estar por muitas horas dividindo a cama comigo, pensei que eu pudesse ser a sua morada temporária.

Um dia poderia precisar pousar como uma libélula nas pernas de alguém, e não gostaria de ser espantada. Olharia com pedido de ajuda, de abrigo, de proteção, torceria para não ser amassada pelo cobertor, nem morta ao ser pisoteada. Coisas simples que toda a libélula deve pensar. Fui abrigo, pensei mais nela do que em mim.

Nessa noite não me tornei um ser especial. Fui com aquele inseto, o que eu sou na vida. Um serzinho ora grande, ora pequeno, que pensa que todos devem ficar confortáveis em suas existências.  Mas e eu? Eu nunca penso em me deixar confortável. Eu nunca penso em mim. Espero que as pessoas decidam onde pousar e quanto tempo preciso ficar imóvel para que elas não se aborreçam. Que prioridade é essa que deixa a libélula decidir como me tratar? Que péssima anfitriã que se corrói por dentro e não toma uma atitude.

Decidi que deveria conversar com ela. “Oi, libélula, tudo bem? Gostaria que me desse um espaço, me deixasse livre para esticar meu corpo, que optasse por um móvel, ou voasse pela janela aberta e me deixasse em paz”. Eu achei que ninguém deveria me julgar por isso, mesmo assim, procurei não espalhar.

Estranho mesmo é ter que acabar esta história por aqui. Não posso contar que ela me respondeu, falou com voz de gente, com olhos de sonho, com pensamento de lucidez. Disse que vive pouco, que as asas dão equilíbrio, como os livros abertos. Cruzou as patinhas quando voou no meu nariz. Continuava a conversar olho no olho. Me senti constrangida. Além de conversar com um bicho eu ainda tive a clara certeza que ela estava me olhando com  uma visão panorâmica.

Em círculos pelos meus cabelos, contou que pode voar muito rápido e mudar de direção em instantes. “Tu também deves fazer assim, amiga. Sangue muito quente, não é mesmo? Diz logo pra ele que tu não agüentas mais e que a companhia de uma libélula é muito mais interessante! Não desmerecendo a nossa espécie, claro. Como disse o Quintana, um dia os homens descobrirão que esses discos voadores estavam apenas estudando a vida dos insetos.  É assim pra todo mundo. Voa, menina”.

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