Passará

É o que passou sem ter que virar a cabeça para ver. Pode abaixar e espiar de mansinho, por entre os ombros, com o braço encostado no peito. Pode ser que se esconda no buraquinho do umbigo que vai ficando mais profundo com o passar dos anos. É sempre um esforço de antever o que já se viu. O espiar de inevitáveis outras possibilidades que não aconteceram. De cabeça para baixo, por entre as pernas e com aquela dorzinha na lombar é um exercício hercúleo.

O forçar de olhos para ver melhor as cores desbotadas nos exige saudosas lentes de espelho. Desempenhar o papel de lembrador é sempre uma tarefa expressiva: ora minha testa se dobra, ora meus lábios riem e tem ainda o estômago, que balança um enjoo de mar aberto e os olhos, que entregam a água salgada: ora de tanta ternura, ora de um banzo de retorno impossível.

E sem avisar um cheiro amargo e doce nos permite um só respiro de segurar forte o maior tempo possível. Espontaneamente penetra sutil até tomar a sua forma etérea e deixa sentir de novo, mas mais longe, mais longe, cada vez mais distante. Um dia feliz de chuva e terra molhada, teu perfume no meio do livro, a letra daquela música que eu cantava para ela dormir. Marulho de encontro em um verão que ousou em terminar. O dia que eu queria ter vivido ao teu lado com um breve pensamento: Olha só, eu consegui!

Os abraços que eu não sinto mais se somam as mensagens que não posso mais mandar e os sorrisos que não posso mais ver. São todos meus, como os lugares que não existem, mas que existiam em noventa e três. Guardo os retratos, empilho os álbuns, salvo os arquivos, mas nada se materializa melhor do que o passarinho que se aninha nos meus cabelos e me repete aquela velha história de lembranças soltas do que eu já senti.

Quando esse café acabar já começa o passado. E se eu voltar ao mesmo lugar amanhã, para tomar o mesmo café, e me sentar na mesma cadeira, já não te olho com os mesmos olhos. Nem eu sou a mesma, nem o dia será, nem mesmo posso esperar que venhas.