Para o que não há retorno

Lado A

Naquele pós almoço, já era tarde das duas horas, quando Hanna seguiu com seus afazeres na certeza de que a esperariam perto da Tríade: o carro, a família, a rua vaga. No entanto, seu trajeto tornara-se mais complexo à medida que os negócios se ampliavam, por isso distraiu-se e perdeu-se nas horas.

Ao término das muitas voltas, deflagrou-se confusa. Onde estaria o veículo? Não a teriam deixado, teriam? Beco por beco, procurou. Nada. E o nada foi se avolumando em tudo que havia: castelos abandonados e canais de águas foscas. As sombras de torres desfiguravam a viela, trazendo à tona um poço e, sobre ele, um pêndulo laminado. Hanna avançava cegamente em sua direção enquanto a réstia de luz recolhia-se a ponto de a treva a arrematar. Magnetizada por um ímã inconsciente, aquele fosso vazio a abocanhava na insaciável ruína da carne a se decompor na jornada inútil do extravio.

Apenas a imagem de uma mulher de braços abertos e pés descalços no meio da rua a impediu. Tinha meia idade, baixa estatura e pequenos olhos negros emoldurados por longos cabelos lisos e pretos. Portava uma linha de preocupação sobre as sobrancelhas, irmanados de outras duas que deslizavam da fronte circundando os finos lábios. Aparentava já ter visto muito na vida. A mulher sinalizava que por ali não haveria mais destino possível. Apontava-lhe a direção inversa, enquanto murmurava repreensões a seres invisíveis. Hanna voltou-se, mas seu corpo forçava o abandono: arrastava-se contra o tempo, o peso de uma inação do espaço sobre si. Contudo, quanto mais a noite sem luz ia sendo vencida, mais suas pernas recobravam o vigor e conseguia traçar a linha reta para a saída.

Lado B

O clima festivo da entrada do verão convidava a passeios turísticos pelo canal da velha cidade. As imensas fileiras de bicicletas em seu entorno e as roupas descontraídas dos citadinos davam o tom do que se poderia aguardar nos finais de semana naquele país europeu.

O ócio em plena terça-feira também era saboreado ao som de playlists nos celulares de quem deixava os pés bambos a ponto de tocar n’água turva e ainda gelada que vinha de alguma montanha. Antecipavam-se planos, discutia-se onde terminar a noite, onde comemorar o Natal, para onde migrar nas férias. O que se faria depois de, o que completaria antes de, o que se protelaria para o futuro? Depois o término, talvez o início, quando se pudesse. Seres humanos costumam contar com a segurança de ir e vir, dia após dia, com manhãs, finais e recomeços.

O que poderia ser tão simples e relaxado contrastava com a imagem suntuosa das torres da Catedral de Parma, desfecho inesperado daquela paisagem de cartão postal. Lá, os ofícios da Santa Inquisição encontravam um lugar para serem absolvidos sob os olhares piedosos dos crentes no juízo final. A Tríade, como foi apelidada através dos séculos, quando o tema da caça às bruxas conquistou o anonimato, resolvera permanecer inerte e impassível no fluxo da história. Enquanto configurava-se em uma atitude abstêmia, a humanidade seguia seu curso, as horas sendo mortas à toa na frente das telas e no labor mecanizado. Os corpos ficando para trás. Quem se lembra deles? Os poços, os corpos, os fossos, as valas.

Sobrevoando a cena do meio-dia, uma ave insólita atravessadora de mundos, elucida verdades atemporais em seu pio onisciente. Castigo sem crime, e crime sem castigo, nunca mais.

Da noite que nos engole, o corvo a prenuncia.

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