Outro ritmo

Bobeira é não viver a realidade
e eu ainda tenho uma tarde inteira”

– Cássia Eller

Tirei um dia de folga. Não era feriado nem havia horas no banco para se aproveitar. A necessidade de nada fazer ao meu bel prazer vinha me atazanando a vida por mais de um mês. Agora era a hora de satisfazer a mim próprio. Levantei cedo, tomei um bom desejum e parti para a ronda da cidade.

Olhar a urbe em um dia útil é muito intrigante. As pessoas são outras, o movimento é frenético e as disposições dos que nos rodeiam estão permeadas de necessidades que nem eles conseguem definir. Meus passos nesse mar de indiferentes é resoluto e de paz. Sobra a mim o tempo que aos outros é contado e descontado. Sou a luz brilhante nesse aglomerado de nuvens cinzentas.

Vou ao encontro do desnecessário, do não urgente, do simples e do impessoal. Eu quero apenas me divertir e desfrutar do prazer de ser e estar. Meu sorriso silencioso, na direção do ponto de visão do momento, cada vez se agiganta mais. Ninguém se surpreende ou a mim, já que nenhuma das pessoas sequer me vê. Sou mais que um homem em marcha. Sou a própria cidade em evolução e revolução.

As breves paradas que faço são para apreciar os detalhes das vias, ruas e praças. A gare de bicicletas vazia, serpente laranja inanimada. O decalque com felicidade aplicado ao tampão na calçada dando vida ao círculo metálico. O trepidar baço dos pneus nos paralelepípedos. Os paralelos mosaicos da Gioconda no recuado da casa vazia. Um breve recado pichado nos tapumes da obra nova. As diferentes tonalidades das luzes na trincheira inaugurada há pouco tempo. Os brinquedos coloridos envoltos no verde do parque. As estranhas vestimentas dos prédios em construção.

Ouço uma música no ar. Diversas vozes em coral cantam melodias que reconheço de um passado não muito distante. Cruzo o portão do casarão antigo e sinto a vibração do surdo e das caixas, tão baixos que penso serem tocados por pequenos anjos. Para meu deleite pessoal e para todos os que me avizinhavam, o ensaio do grupo ainda ia longe. Me escorei na mureta mais próxima e fechei meus olhos. Preciso me embebedar com o deleite que a cena sonora me causa.

Uma cidade sem pressa, é outro ritmo.

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