Dizem que tudo o que está acima, também está abaixo. A terra é um espelho do céu.
Por isso os antigos peregrinos medievais saiam de suas casas em algum lugar da Europa e se guiavam pelas estrelas do caminho branco chamado via láctea. Buscavam o local onde as relíquias do apóstolo haviam sido encontradas. A descoberta da tumba de Tiago na localidade galega de Compostela era uma coincidência divina, um presente de Deus aos cristãos, já que os caminhos de peregrinação para Jerusalém se tornaram impossíveis de transitar quando os muçulmanos tomaram a Cidade Sagrada.
Naquela época a caminhada iniciava na porta de casa. Eram meses de viagem a pé, uns iam a cavalo ou carroça, mas a maioria do populacho vencia os quilômetros passo a passo. Viajavam em pequenos grupos que se formavam do encontro com outros peregrinos no próprio caminho e serviam-se de proteção e apoio mútuo. Nas cidades e aldeias da rota iniciou-se a construção dos chamados hospitais. Estes eram locais onde os caminhantes poderiam descansar a noite, receber um pedaço de pão e uma sopa rala, além de curar o corpo exausto e muitas vezes ferido pelo esforço de dezenas de quilômetros feitos a pé, expostos ao sol rasgado ou à intempérie.
Muito embora o fluxo de peregrinos representasse fonte de recursos econômicos para as comunidades, havia um espírito que superava as questões temporais e se formava no cultivo dos princípios cristãos de solidariedade e compaixão.
Durante séculos o Caminho de Santiago vem se construindo, com milhares de pessoas que buscam algo naquele ponto específico do mundo, geração após geração. A cidade foi se convertendo em um ponto atrator, algo inexplicável que provoca um fluxo magnético.
Hoje os peregrinos procedem das mais diversas partes do mundo. São raros, embora ainda existam, os que partem de suas casas a pé. A maioria escolhe um ponto de partida e utilizam aviões, carros e ônibus para chegar ao local de início da peregrinagem. Mas, após iniciar a caminhada, o tempo dilui suas fronteiras.
O peregrino hiper tecnológico guiado por GPS deve ceder inevitavelmente ao passo lento e orgânico. Sobre sua cabeça aviões cruzam os céus a 800 quilômetros por hora, enquanto ele, pacientemente, fará esta distância passo a passo, durante mais de um mês de viagem.
Haverá dias em que sua mochila terá um peso insuportável e, em outros, parecerá muito leve, mesmo que contenha os mesmos objetos essenciais. Ele sentirá o fluxo magnético de milhões de almas sobrepostas indo na mesma direção. Quando se entregar à corrente, tudo parecerá mais leve e cheio de sentido.
O caminhante atento irá perceber que o peso de sua mochila corresponde ao do coração. A cada passo, dia após dia, vai desapegando de mágoas e desconfianças. O peso destes sentimentos impede a caminhada. Quando o coração está leve o caminho é um rio e o caminhante um nadador que se deixa levar. Flutua de forma sutil e doce a favor da corrente.
Aos que insistem em segurar suas dores, como se fossem trunfos que dão sentido ao existir, resta o arrasto provocado pelo aluvião.
Santiago de Compostela é o lugar onde todos vamos chegar. Estamos todos indo para lá, alguns carregando pedras em seus corações, outros imersos na experiência de viver a mágica estrada. É inevitável, todos nos encontraremos em Compostela.