Dos prazeres da vida
Ananyr Porto Fajardo
Aprendeu a ler cedo e nunca mais parou. Quando o pai chegava do trabalho com um gibi, ela chamava as irmãs menores para ler para as manas, uma desculpa para ser a primeira a desfrutar da história. A mãe precisava esconder os livros didáticos comprados para o ano seguinte para que a filha não os devorasse durante as intermináveis férias de verão. Dormia com um livrinho embaixo do travesseiro para o caso de acordar de noite e não ter o que fazer, imagine! Amava Monteiro Lobato, O Mundo da Criança, Alice no País das Maravilhas (edição ilustrada que ganhou da madrinha).
Porém, vivia um dilema: não queria que o livro terminasse, poupava a leitura para que a história não chegasse ao fim. Começava devorando os capítulos e, pouco a pouco, diminuía o ritmo até terminá-lo. Bem, qual seria o próximo?
Acontecia o mesmo com sorvete de casquinha – economizava nas lambidas para não terminar, competia com as irmãs para ver quem demorava mais, até que entendeu que não aproveitava toda a cremosa delícia. Os pais insistiam em comprar sorvete de copinho para não melar as mãozinhas arteiras, mas não era o mesmo sabor.
Sapato novo também, especialmente aqueles para dia de festa, com solado de couro. A cada dois passos, parava e limpava a sola com as mãos para não arranhar, até que ia brincar e esquecia da novidade. À noite, pensava que ia cuidar melhor dos próximos.
Lápis, então, era sagrado. Até hoje gosta de ponta grossa, sem apontar. O odor do primeiro estojo colegial, da borracha inolvidável, do caderno encapado pela mãe em papel de presente, tudo retorna à escrivaninha ao escrever à mão.
Hoje, em tempos de e-book, calçados de plástico e lapiseira para grafite, a renovação se dá em ritmo de descarte, sem muito tempo para curtir o epílogo e o desgaste. Renova-se o estoque e pronto. Mas continuo insistindo em livros de papel, e quantas vezes não comprei pela capa! Busco em livrarias, sebos, estantes alheias. Releio, encontro novas versões e diferentes lembranças retornam. Lápis, tenho coleção, e me perco enlevada em papelarias, com tantas opções de formato e finalidades.
Mas o sorvete de casquinha ainda mantém aquele gosto de infância e não consigo devorá-lo, apenas prová-lo aos poucos até lambuzar os dedos calejados pelo teclado deste computador.