Joyce Kitchell por Maristela Rabaiolli

Se tu viesses

Tema: Gravura: A mesa de chá, de Joyce Kitchell

Maristela Rabaiolli

Se tu viesses para o chá, eu arrumaria uma linda mesa com toalha branca bordada com fios dourados. Colocaria a melhor porcelana, aquele jogo antigo que a gente guarda só para ocasiões especiais, sabe? Acomodaria ali guloseimas, chá, rodelas de limão, cubinhos de açúcar. E flores. Eu te receberia entre risos e lágrimas naquela que seria uma ocasião especial, porém insólita, tão diferente do teu estilo simples de ser e viver. Olhando nos teus olhos de mar, contaria que teus netos estão crescendo, as rosas que plantaste florescem no jardim, o pé de abacateiro vingou e, recentemente, plantamos um flamboyant na praça da igreja. Bem diante do sino que tu tocavas em dias de quermesse.

Se tu viesses para o chá, te contaria que algumas horas antes da tua partida, eu tinha retornado de longa viagem. Era quase meio-dia quando cheguei. Exausta, dormi à tarde. À noite, no restaurante, a notícia chegou junto com o jantar. A mãe disse, depois, que parecia que tu só estavas me esperando. Pude me despedir, é verdade, mas não cheguei a tempo. A tempo de te contar as coisas lindas que vivi ao cruzar o oceano. Lugar de onde, um dia, também veio teu avô italiano. Aquele que te ensinou o ofício de trabalhar com madeira, podar o parreiral, fazer vinho, salame e tantas outras coisas.

Se tu viesses para o chá, tu saberias que era já madrugada quando te encontrei inerte. Junto de ti, um amigo e o filho mais velho. Fui a primeira a chegar. Teu ataúde, confeccionado em cerejeira, era qual obra de arte, digno de um grande conhecedor como tu. Trazia, na tampa, um Cristo entalhado e, nas laterais, douradas e robustas alças. O aroma da nobre madeira perfumava o ambiente, despertando na memória tempos antigos quando transformavas árvores em casas. Era uma noite cálida de janeiro. No céu límpido, em conjunção com Vênus e Júpiter, a lua sorria. Dizem que ela, assim, crescente, favorece a renovação da vida. É estranho perceber que, às vezes, vida e morte andam juntas, irmanadas.

Se tu viesses para o chá, saberias que teu funeral foi digno de um homem simples, como simples era a vida que levavas, sem grandes filosofias. Foi digno de um ser humano com defeitos e qualidades; de um sábio com pouca instrução, mas que sabia dar valor a coisas pequenas como tomar uma graspa, contar um causo, assar um porco, plantar uma árvore ou consertar uma motosserra.

Se tu viesses para o chá, saberias que parentes e amigos compareceram para te prestigiar no derradeiro dia. Que o padre rezou missa. Saberias, por fim, que, quando, diante do mausoléu da família, depositamos teu esquife, um fato inusitado aconteceu: a gaveta a ti destinada, estreita demais, parecia se recusar a te receber. Era preciso solução. Minutos depois, a música que se ouviu foi a mesma que te embalou a vida inteira. A serra elétrica ceifou as lindas alças douradas do caixão. Junto de ti, as cinzas de tua filha. E a gaveta se fechou para nunca mais abrir.

Se tu viesses…

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