Nara Accorsi em foto de Lia Zanini

Instante

Nara Accorsi

O antigo galpão de portas abertas era um convite para entrar. Vinda do sol, não conseguia distinguir as formas perdidas na escuridão lá de dentro. Aos poucos, fui me aproximando e as coisas tomando seus contornos.

Num canto, de costas, vi um homem. Camisa de algodão grosseiro, mangas arregaçadas, debruçado sobre algo que eu ainda não conseguia enxergar. Só ouvia um ruído seco, abafado. Angelo? O som parou. Contornei-o até ficarmos frente a frente. Os mesmos olhos grandes, escuros, rosto judiado pelo sol, e o mesmo sorriso. Nada parecia esquecido; nenhum dos dois perdera a alegria do reencontro. Ele modelava no torno, um objeto em argila.

Éramos crianças. Ele, um moleque forte, correndo pelo campo atrás das cabras, pulando cercas, subindo em árvores para colher frutos maduros para nos deliciarmos. Eu, a menina da cidade, que passava as férias na casa dos avós e lá, encontrava Angelo. Passava horas do dia, solta pelas redondezas. Juntos, banhos no riacho, pesca de lambaris e, com bodoque, atirávamos nos passarinhos. Foram muitos verões. Depois, a rotina dos estudos impedia meu retorno. Voltei para o enterro de meu avô. Logo na chegada a pergunta: o que é feito de Angelo? Alguém me apontou o galpão. Vai lá!

­- Não quero interromper… Angelo retomou os movimentos com o pé no pedal. A peça girava em suas mãos mergulhadas no barro. Abrimos aos poucos o baú das lembranças e, descontraídos, rimos das travessuras, cuja culpa sempre recaía sobre ele. Risos, leves afagos no olhar e enfim, a mágoa ainda presente. Silêncio. Os gestos das mãos rudes, acostumadas na lide do campo, se moviam suaves acariciando as formas, como se fosse um corpo de mulher. O meu. Uma troca de olhares. A cadência, a maciez e umidade do barro, envolvendo, invadindo. Quase em êxtase, e constrangida por deixar tão visível minha emoção, revi as lágrimas, e o pedido: fica! Com as mãos trêmulas peguei a máquina fotográfica. Uma foto. Posso?

Quando saí do galpão, deixei Angelo. Mais um adeus. Agora levo comigo o registro daquele instante.

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