Gregory Harlin por Marcia Ribeiro

Amor caído

Marcia H de M Ribeiro

Ela golpeia insistentemente a porta da cozinha. Ele estica a mão molhada e empurra a sanfonada que para a meio caminho. Entra, repousa sobre o balcão de madeira e observa seus movimentos enquanto ele volta a lavar a louça da semana. Vira o rosto em direção à janela aberta, faz um leve movimento com a cabeça, mas retoma a limpeza da panela engordurada embaixo da água que pinga da torneira sobre a bacia na cuba.

No rádio sobre a mesa, coberta por uma toalha floreada de plástico surrado, toca a Hora do Brasil na última transmissão da semana. O ventilador de teto, com pás de madeira em cerejeira, gira ao compasso do ruído metálico, deslocando seu topete e o ar quente de um lado para outro. O relógio pendurado na parede sobre o fogão amarelo, tal qual a geladeira, marca três horas desde o inverno passado.

Ela se dirige à janela aberta e repousa seu corpo delgado sobre o parapeito. A louça se acumula sobre o secador na pia. Na rua um cão ladra forte. Ela se lança para a noite. Vira-se a tempo de ainda ver um pedaço do corpo dela abaixo do parapeito do lado de fora.

Sem fechar a torneira, abre a porta do apartamento e, apoiando as mãos nos corrimões dispostos nas laterais, salta de três em três os degraus dos dois lances de escada. No saguão, a porta de vidro do edifício não abre a seu comando. Apalpa a bermuda sobre as nádegas e então coloca as mãos no bolso da frente. Não tem chave alguma ali. Olha uma e outra vez da porta para a escada.

Passa a mão na cabeça arrumando o topete desgrenhado. Põe a mão sobre o estômago curvando-se para frente, e depois volta a mexer em vão na mesma maçaneta. Dá um chute na porta. Fecha os olhos e grita um palavrão ao cair sentado no chão agarrando o pé descalço. Do rosto crispado escorrem-lhe lágrimas. Levanta numa perna só apoiando-se na parede lisa de escaiola rosada.

No jardim, o gato pachorrento da vizinha atravessa com uma calopsita, de penas amarelas parcialmente cortadas, na boca. Ele grita e esmurra a porta de vidro enquanto o felino, acomodado sob a gramínea, subjuga o pássaro com as patinhas.

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