Fases

Em sua novela A Trégua, narrada em forma de diário, o escritor uruguaio Mario Benedetti, coloca seu personagem protagonista, Martín Santomé, no dia 27 de agosto (presumivelmente, de 1957), sentado em um banco à Plaza Matriz, no Centro Antigo de Montevidéu. Lá em sua reflexão, Santomé afirma para si mesmo, “(…) nesse momento afirmou-se definitivamente em mim uma convicção: eu sou deste lugar, desta cidade. (…) Cada um é de um só lugar na terra e ali deve pagar sua cota. Eu sou daqui. Aqui pago minha cota.”

Santomé era um homem viúvo prestes a se aposentar nessa Montevidéu dos anos 1950. Se dava conta, ou relembrava para si, que muitas vezes cruzara aquela praça. E, como vimos, julgava que ali pagava sua cota. Via seu lugar neste mundo.

Durante vinte cinco anos trabalhei junto à Praça da Alfândega, no Centro de Porto Alegre. Primeiro de madrugada, como digitador, por uns sete anos. Cruzava a Alfândega, vindo da Praça XV, por volta da meia-noite. Às sete da manhã fazia o caminho contrário, muitas vezes, ao alvorecer, ouvindo a algazarra do passaredo que acordava. Depois, durante o dia. Descia de uma lotação na Rua General Câmara, contornando a praça. Na saída, cruzando-a para pegar alguma condução para retornar para casa.

Uma vez, em uma das primeiras oficinas de crônicas de que participei, escrevi um texto sobre um livro fotográfico focado na Praça da Alfândega, em seus diversos ângulos. Não tenho certeza de onde foi parar essa crônica, mas lembro que terminei declarando que senti falta de uma imagem do General Osório.

Como tenho a fotografia como um hobby, muito registrei a Praça. O velho prédio dos Correio que se tornou o Memorial do Rio Grande do Sul; o Museu de Arte; o prédio do antigo Banco do Comércio, que já foi Sulbrasileiro, depois Meridional, e hoje é o museu Farol Santander; o gigantesco, para as dimensões locais, fantasma branco que é o prédio do Banrisul, a assombrar as históricas construções vizinhas locais; a calçada à altura da Rua da Praia com suas pedras portuguesas imitando o calçadão da orla de Copacabana no Rio de Janeiro; o Clube do Comércio que viveu seus dias de glória há cinquenta anos; o prédio onde ficava o Cine Imperial; o prédio onde fica o Banco Safra.

Já me deixei fotografar. Em uma edição da Feira do Livro sentei entre Mario Quintana e Carlos Drummond. A foto foi feita pelo último lambe-lambe de Porto Alegre, talvez ali por 2011. Os poetas estavam então ao lado do General Osório. Não de costas para ele, como ocorre agora.

A pandemia gerou um freio. Com a quarentena já não era tão simples vir ao Centro. Depois, mesmo com o arrefecimento da peste, a rotina nunca mais se tornou igual, diária.

Já não cruzo a Praça. Como Martín Santomé há mais de sessenta anos, estou aposentado, e, em Porto Alegre, pago minha cota.

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