O barulho da chuva teima, constante, quase infinito. Por trás das pálpebras cerradas de dor e desespero, os corpos dos amantes permanecem estirados no seu pensamento, inertes, abraçados na sarjeta. O sangue misturado à enxurrada escorre rumo ao leito do rio. Os lábios roxos, antes contraídos, agora se soltam, num suspiro. Os olhos se abrem. Ela desperta antes do ato extremo: não houve tiro, nenhum. Não houve sangue. Não houve vingança, ainda, apenas o desejo sentido, contido até então.
Diante dos seus olhos embaçados de chuva, o casal se abraça. Lábios revezam palavras indistintas e beijos, ignorando os pingos que reverberam no guarda chuva compartilhado. Outros sons chegam, buzinas distantes, o vento nos galhos. Uma sinfonia melancólica aos seus ouvidos. Das mensagens cheias de desculpas informando atrasos, jantares, saídas com amigos, inverdades que ela sempre suspeitou. Das promessas de amor incondicional, quebradas. Do pseudo amor que por vezes beirava a violência, física e psicológica. Do estelionato emocional, da não-reciprocidade, das pequenas mentiras, das complexas. Lembrou-se de tudo. Ali, de pé, segurando a arma que comprou num momento entre tudo isso, ela julga toda essa carga de sentimentos e desatinos. E decanta suas lágrimas. E sopesa.
Mas o braço estendido, que aponta a arma, é um ato real. As pálpebras agora estão abertas, bem abertas, evitando um novo entressonho, ainda que fugaz. O coração segue dilacerado, a chuva, um pouco mais fina. O marido infiel, a amante, o alvo que nunca esteve tão próximo, tão nítido. O momento, uma eternidade, dura poucos segundos. E vem o estalo: não vale a pena. O braço distende. A mão trêmula deposita a arma de volta na bolsa e tira um lenço. Chega de lágrimas.
Nenhum amor está acima de tudo, nem aquele – se é que foi amor. Ainda que tenha convivido com o desrespeito, o desprezo cotidiano e as migalhas de um sentimento que nunca foi inteiro, a soma dessas traições não merece correspondência. Violência psicológica não se paga com violência física, e o machismo não será morto com um tiro. O último olhar que ela desferiu contra ele foi de desprezo.
A caminho do aeroporto, malas prontas carregando somente o essencial, ela pensa no mínimo que teve, e no que merece. Separação, distanciamento, outro amor, tudo isso que lhe foi imposto durante muito tempo. Tudo o que ela quer agora, de certa forma. Tudo que terá, promete. Faça chuva ou faça sol.
ps: este texto é um exercício, uma sequência da crônica “Estalos na chuva” (21/11), do amigo Nelson Ribas.