Quem me habita
Dio Santanna
Sou a que não vês. Que com este ímpeto incontrolável de viver, vive. Sempre fugidia do não-ser. Que não se basta nas palavras. Nos desejos incontidos. Que ao olhar as cicatrizes, na palma da alma, percorre as linhas na pele quente, que vão do músculo no peito a este andar errante.
A que não controla. Impulso ardente. Que em seus rituais cíclicos, se morre. Se nasce. É vendaval ao invés de calmaria. Por puro gosto pelo vento. Voa livre. Muda de rota. De gosto. De sentimento. E prefere inverdades vividas a meia verdades. Medíocres. Pequenas.
Sou a que não vês. Que de tanto querer, se reinventa. A cada instante. Cada palavra parida. Não se completa nunca e faz da busca sua constante inconstância. Plenitude é não encontrar-se. O fim não a seduz.
Que faz da tirania dos desejos, sua alquimia. Seu desejo maior: palavra. Faz da sua incompletude, caminho. E a alma delira o não encontro. A busca é pura alforria. Liberdade é ser o que é. Se provocar, sustente.
Sou a que não vês. Que faz da dor, sua fortaleza. Labirinto que parece não ter fim. Travessia solitária. E no fim, enfim, é recomeço. A que em lágrimas, se hidrata. E da pena faz poesia. Não se apequena.
Que se permite tudo. E se reconhece sempre. Transita entre mundos e verdades. E quem a vê, sabe. Sente. No olhar. Se basta e se continua. Nua essência. Indecência crua. Não se define. Não se julga. Não condena. Pulsa.
Sou a que não vês. A que se quer sem âncora. Por se querer rio. Que no instante vivido, é. E no mesmo, não mais será. Que bebe de si para matar a sede. E a boca sedenta, se quer rio, outra vez. A correr.
A que não se vê inteira. Por se querer metade. Incompleta. Na eterna busca dos “eus” em mim. E só no amor se refaz. Se dilui. Se inquieta. Transbordante-mente. Alma que não se contém. Que incansavelmente se procura.
Eu sou. Quem na palavra me habita.