Desalento sobre tela

Na velha tela, cujo bastidor parece constrangido de tão gasto, espalhei como base a tinta branca meio encardida que encontrei no canto do atelier. Na sala contígua, vazia, pouco antes tinha alguém. Agora só, sem inspiração e entorpecido por natureza, resolvi pintar uma árvore.

Para a copa usei salpicos de vários verdes, desorganizadamente atirados com precisão, buscando aparentar, com essa miríade verdolenga, um pouco de vida e aconchego. Dois passarinhos apressados logo se assentaram, vindos sei lá de onde. Deixo? Deixei. O tronco dividi em três pontas, para dar melhor sustentação à minha copa espalhafatosamente simétrica e seus dois novos habitantes. Exagerei de propósito na tinta marrom muito forte, e depois, arrependido, pinguei aguarrás. Com um dedo, contive o fluxo de tinta molhada, e o movimento virou terra. Ali plantei um gramado, que se espalhou até o céu ainda branco, inexistente, que aguardava atenção. No mesmo solo, esbocei com giz carvão pequenos montes e subcamadas, em busca de profundidade. Sobre este rabisco, definitivo, espargi a tinta amalgamada com pincél, depois com as costas da mão, e o efeito, improvável, trouxe relevo, sobressaindo minha superfície. Lambuzado, vi uma fina linha verde escorrer até meu pulso, manchando a manga da camisa. Despi-me. De peito aberto e comprimindo o pincel encharcado de vermelho, azul e amarelo, criei um laranja queimado, um terracota forte e palpável, com o qual esculpi rochas esparsas no entorno da árvore. Numa delas sentei, cansado, buscando um horizonte. Não tinha. Então inventei. Com a espátula besuntada de cores, gerei montanhas sobrepostas e outras árvores, distantes e menores. Atrás de uma delas desenhei uma casebre de tijolos mal ajambrados, com uma janela que furava a parede e nada mostrava. Um rabisco no teto criava dúvida: cruz ou veleta? Não importa, prioridade agora é olhar para o céu índigo e nuvioso, que, enfim, colei ao gramado. Pronto? Fitei a pintura com orgulho inicial, mas que findou em desalento. Apesar de toda cor, toda natureza e horizonte, meu torpor permaneceu, impregnado entre tintas e pinceladas, desgosto on canvas. Tentei outro passarinho. Me pareceu falso, postiço. Joguei tudo fora.

Mas alguém – além do tempo, imparável – passou por ali, no beco onde descarto desilusões, e resgatou minha metáfora em tela. Sem pretensão, e com profunda nitidez, optou por enxergar o cenário com outro filtro, outro olhar, deslumbrante qual chiaroscuro em branco e preto. Uma realidade que eu não tinha enxergado antes. Mesmo sem as cores, vãs e infrutíferas, parecia melhor. E era. Outro quadro, eu, outro alguém… quem diria?

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