De ponta a cabeça

Pode parecer óbvio e até natural que corpo e mente convivam em perfeita harmonia, mas, na realidade do dia a dia, não é bem assim que as coisas acontecem. Muitas vezes, tudo o que desejamos é dar uma escapada de nós mesmos. Ora porque estamos chatos, ora porque estão nos chateando. 

Ao longo da vida, em diferente momentos, eu quis fugir do meu corpo e sumir por aí.

Na infância, isso acontecia na hora das broncas e ajuste de contas.  

Aliás, nunca entendi o motivo pelo qual, além de ficar de castigo, minha mãe me fazia ouvir o sermão completo. Se já estava decidida a cortar meus prazeres, não podia me liberar do esporro? Não, eu era obrigada aprestar atenção em cada palavra do rosário das lamentações. 

Para me distrair e me livrar daquela apurrinhação, gostava de imaginar o meu eu saindo pela boca igual fumaça e se materializando fantasma bem acima da cabeça da minha mãe. Ali, ele/eu dançava no ar, dava cambalhotas e fazia todo tipo de careta.  Precisava me segurar para não cair na gargalhada, um sorriso escapava.

Ainda mais irritada, minha mãe perguntava: 

Está rindo do quê? Você está me ouvindo? 

Mais tarde, na adolescência, outras situações serviram de gatilho para o desejo de evaporar: espinha no nariz, o peso na balança, celulite no bumbum.

Nessa fase, a ativação do modo “planta” de existir não trazia nenhuma graça. Era só uma vontade de dizer: 

— Para o mundo que eu quero descer.

Aqui não havia fumaça, era só um fogo a devastar tudo por dentro. Uma frustração absurda por habitar um corpo incompatível com meu ser.

Aos solavancos, seguimos juntos e chegamos à vida adulta. 

Pensa que abandonei a antiga mania de dar uns perdidos em mim? Que nada! 

Reunião de trabalho ou condomínio, discussão em família, gente cansativa ou soberba, cobrança amorosa, tudo isso ativa minha fuga para Nárnia. 

A diferença é que hoje em dia não vejo o fantasminha nem me sinto “planta”. Saio de mim à francesa, sem muita culpa ou cobrança.

Na minha idade, já não me afligem os erros cometidos, as críticas das pessoas invejosas. O que me faz querer sumir, sair correndo de dentro de mim, são os boletos e a fatura do cartão.

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