Cynthia Torp por Ronaldo Lucena

Mochila do avesso

Ronaldo Lucena

Toda jornada pede pelo menos um momento de virar o avesso a bagagem. Esparramar todos os pertences numa superfície limpa e plana para um inventário – a necessária contabilidade entre aquilo que se trouxe de casa e as coisas adquiridas pelo andar dos dias. O excedente pode custar caro. Difícil aprender que é muito pouco o que realmente se precisa. Sempre alguma peça de roupa volta limpa na mala, fadada ao desuso por pelo menos mais um inverno em nossas vidas. Não tem motivo.

Pamplona, Espanha, 2017, se apresentou pela janela do trem. No mesmo dia parti de ônibus para San Jean Pied de Port para começar o Caminho. Voltei como peregrino tendo passado já por Roncesvales e Zubiri. Passo a passo cheguei no Alto do Perdão e em Puente la Reina, retornando à Pamplona de ônibus. Já contabilizava cinco dias, cinco noites em lugares diferentes, cerca de noventa quilômetros andados e alguns amigos na minha mochila.

Não se pode tudo nessa vida. Meu plano de peregrinação precisou um salto nas cidades para conseguir chegar a Santiago dentro dos quinze dias permitidos pelas férias do trabalho. Para quem veio caminhar, andar sobre trilhos causa certo estranhamento e a sensação de ludibriar o propósito. E estar numa estação de trens na Europa me remete às imagens dos filmes de guerra, imaginando as pessoas fugindo de alguém, para algum outro lugar. Possivelmente melhor.

Sentado no banco de madeira, depois de um café, vi um velho também esperando o tempo passar, como se já não tivesse marcado pelas mãos e pelo rosto enrugados. Que destino teríamos nós dois depois do próximo embarque? Eu o perdi de vista.

Algumas horas de trem até Ponferrada foram suficientes para eu começar aliviar o peso nas costas. Um dia de descanso e, pela primeira vez, a constatação de que o Caminho é feito de encontros, desencontros e reencontros. Mas isso não se traduz em perdas. Todas as pessoas que eu havia encontrado, conversado e dividido os passos ficaram, naquela manhã, caminhando na poeira e pedras até Estella. Eu precisei trocar o espaço da companhia delas pela leveza da saudade.

Um caminho não basta ser andado. Não se fazem necessários todos os rastros no chão. Os descansos, como estações de uma linha férrea, nos dão oportunidade de esquecer algumas tralhas pela plataforma. Sem a devida conta, acabamos carregando sentimentos, pessoas, mágoas muito pesadas, como se a gente fosse a própria locomotiva gastando todo carvão possível para manter o movimento.

Por isso reciclar é preciso, no andar preciso. Em cada intervalo desse trem, descansado na linha curva do tempo, eu virei a mochila do avesso. Uma oportunidade para espantar os fantasmas, as energias sugadoras e ficar leve antes do apito nos anunciar o próximo destino. Nessa viagem quem chega? Quem parte? Quem vive?

 

 

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