Cynthia Torp por Bernadete Saidelles

Arlequim com Pierrô

Bernadete Saidelles

Hoje de manhã me surpreendi com um quadro no lixo. Uma imagem antiga em preto e branco, de pessoas dentro do trem, à noite, num final de dia muito frio, a julgar pelo sobretudo usado por alguns, e o cansaço impresso em cada rosto.

Pensei no artista que o pintou. Quanto tempo estudando para chegar na perfeição dos traços? Quantos anos para descobrir aquele jeito único de pintar, naquelas misturas precisas de tintas, e o avental que vira uma obra de arte à parte.

Mas o mais interessante é a emoção colocada na tela, vinda de algum lugar profundo de si, naquela parte do mar em que a escuridão vira cristalina e tudo fica claro e colorido.

Gosto de ver arte onde há rostos porque eles falam muito do autor da tela como as palavras dizem do que vai pela alma do poeta.

É uma imagem inquietante porque evoca emoções contraditórias, embora a contradição exista mesmo no olhar de quem na obra descansa os olhos, como numa paisagem distante. Que inquietações guarda o artista, quando deixa escapar o sofrimento na personagem principal da tela, onde a luz reflete quem é o protagonista: um homem com mais de sessenta anos, apesar das rugas estarem escondidas atrás da maquiagem branca, com as lágrimas pintadas em cima, um típico palhaço retornando do serviço, num abatimento que mói os ossos da alma. O semblante sofrido remete ao Pierrô (Pierrot), dos carnavais italianos, do estilo teatral conhecido como “Commedia dell’Arte”, que na época vestia roupas feitas com sacos de farinha, pois era o mais pobre do trio famoso formado com Arlequim e Colombina. Mas era o Arlequim que vestia roupas de losango, como do homem retratado, pois era debochado, vivia pregando peças nos outros, e tinha um repertório de movimentos acrobáticos que impressionava.

Na imagem, o homem envelhecido, precisando ganhar a vida do jeito que pode. Uma roupa de saltitante Arlequim com um espírito sofredor de Pierrô.

Quem sabe é isso, somos todos uma mistura de Arlequim com Pierrô, alternando máscaras, tentando disfarçar aquilo que sempre o espelho nos mostra.

Uma tela tão linda e triste em busca de outro lar. Tive vontade de levar o quadro comigo, mas lembrei que não preciso, já tenho em casa muitos espelhos.

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