Crônica-Avignon

Reviravolta

Autora: Duncan

Hoje, ela acordou mais cedo do que o habitual; uma inquietação dançando no estomago. Como diria sua mãe ela nada tinha com que se preocupar a não ser cuidar da casa e do marido. Levantou da cama e foi preparar o bolo da vovó,o predileto dele, sacudindo as bobagens da cabeça. Revisa a lista de compras, com cuidado, para não esquecer nenhum dos ingredientes para o almoço.

Sente o aroma da loção de barba,do sabonete Phebo, antes mesmo dele descer para o desjejum. Ele surge com a vasta cabeleira negra úmida do banho, e ela sente-se derreter como um sorvete fora do gelo. Pergunta se ela dormiu bem, sem esperar pela resposta, bebe apressado uma xícara de café e recusa o bolo.

-Deixei o dinheiro para as compras na mesinha do corredor- ele fala antes de ir embora.

Ela termina de lavar a louça e vai para o quarto se vestir para ir a feira. Sobe as escadas e olha para a cópia da pintura O Homem e o navio no oceano pendurado na parede. Achara o quadro inadequado para a casa decorada com frágeis bibelôs e toalhinhas de crochê, além de um desperdício. Mas fingiu alegria para contentá-lo.

Ao pegar o dinheiro que ele deixara, ve a carteira dele esquecida ao sair e coloca-a na bolsa. Separa uns trocados para o bonde e vai para a parada.

– Dona, dona, chama o cobrador. Nenhuma resposta.

A única coisa que lembra e ter entrado no bonde errado de volta para a casa com a sacola cheia de frutas e legumes. E do vestido leve de listras coloridas que vira pela janela do bonde e das mãos da mulher sendo beijadas por um homem de cabeleira negra. Não existia outra igual.

– Fim da linha, dona – insiste o cobrador – A senhora está bem?- Acrescenta aflito.

Ela balança a cabeça para cima e para baixo, desce, esperando a alma voltar para o corpo.

Ouve de novo a voz do cobrador, avisando-a que esquecera a sacola de compras no banco.

– Não preciso mais dela-disse.

Respira fundo e pega um táxi em direção ao Centro. Desce na Avenida Borges de Medeiros rumo a loja Sloper. Na vitrine, o vestido de listras coloridas idêntico ao da mulher no carro acena para ela. Num impulso entra no recinto sob os olhares desdenhosos das balconistas para sua roupa monocromatica marrom. Paga uma exorbitância pelo vestido junto com o perfume Chanel n 5. Aproveita e compra alguns livros na Livraria do Globo antes de voltar para a casa.

Ao chegar, vai direto para o banho. Coloca a roupa nova e um pouco de perfume nos pulsos.Nas escadas, olha para o quadro de Dali com outra ótica: ela se ve conduzindo a caravela- sua vida –para outro destino, sem ser levada ao sabor da vontade do marido.

O barulho da chave na fechadura a distrai de suas divagações, ouve os passos dele em direção a cozinha, o barulho das tampas das panelas –vazias- serem abertas. Ele grita por ela, pois não a ve no lugar de sempre com o avental rosa.

Ela espera um bom tempo antes de responder: na sala

. – O que aconteceu, não fez o almoço? A pergunta dança no ar ao ve-la sentada na poltrona, pernas cruzadas; a carteira dele aberta no chão e as listras coloridas do vestido gargalhando a cada respiração dela. Nas mãos ,o livro Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues.

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