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Espera

Autora: Graziela Algarve Cardoch Valdez

Fim.

Fechou o livro com alívio e, depois de um boa noite automático, levantou-se cambaleante: a perna esquerda formigando pela posição desconfortável em que deitara ao lado dele.

Encostou a porta devagar, deixando a luz fraca do corredor passar pela fresta. O menino ainda tinha medo do escuro.

Tomou banho e deitou-se na cama, determinada a ler um livro antes de dormir. Sabia que já nas primeiras linhas desistiria da empreitada e seria vencida pelo sono. Mas a sequência se tornara um hábito que o livro parado no criado-mudo incitava-a a manter. Sempre um dia de cansaço. Sempre uma história e um boa noite automático para o filho. Sempre um livro por ler no criado-mudo. Sempre o sono vencendo as vontades no final.

Claro, havia dias diferentes, e não demorou a chegar um deles.

Era início de outubro quando recebeu a carta. Carta! Quem ainda envia cartas? Em uma caligrafia quase infantil, era curta e bastante objetiva:

Sei que tenho muito a explicar.

Gostaria de te rever na quarta-feira, dia 19, às 9h em frente à Prefeitura.

Luís

Muita filha-da-putice! Aparecer de repente, com uma carta escrita em dois minutos, pedindo um reencontro depois de mais de vinte anos sem qualquer contato. Mas como recusar?

O dia 19 finalmente chegou. Fazia um frio atípico naquela manhã de outubro. Demorou a encontrar nas roupas recém guardadas de inverno, casacos suficientemente-quentes-convenientemente-leves, para ela e para a criança.

Saíram atrasados, mas apenas a uma corrida curta de pegar o ônibus, geralmente cheio àquela hora. Mais ou menos no meio do caminho, vagou um assento, que ela tratou de ocupar, colocando o menino sobre os joelhos magros. Sacolejando do início ao fim do trajeto, chegaram em trinta minutos ao centro da cidade. Teriam ainda outros trinta minutos de espera.

Escolheu um café na esquina. Pediu suco e torrada para a criança e sentou-se de frente para o prédio velho da prefeitura, procurando em cada rosto mais semelhanças do que diferenças com o dela.

Apesar do frio, o suor empapava-lhe as costas, e o tagarelar alegre da criança impacientava a mulher.

Faltavam ainda dez minutos. Tentou pensar em outras coisas. Mas qualquer ideia voltava a ele. A mágoa pela partida sem despedidas. A apresentação de dia dos pais na escola em que a mãe o representara. A saudade doída. As tantas vezes em que tentou achá-lo pela internet. A mentira oportuna que adotara já adolescente: meu pai morreu.

Faltavam cinco minutos. Lembrou da mãe, agora falecida. Da secura dos modos. Da pobreza de afetos. Lembrou de nunca ouvir ela falar mal do marido-fugido. Nunca um julgamento. Nunca uma crítica. Lembrou das fotos do pai espalhadas pela casa. Do nariz, que tinham igual e da alegria, que não sabia terem vivido um dia, congelada nos sorrisos da foto maior, na sala.

Faltava um minuto. Faltava coragem.

Deixou na mesa o dinheiro e, sem esperar pelo troco, atirou-se à rua segurando firme a mão do filho, o passo apertado na direção inversa à da prefeitura.

Desta vez era ela quem o deixava.

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