cronica Gabriel Lesz

Efígie

Autor: Gabriel Lesz

Depois de adquirir um navio novo, resistente às intempéries, e reunir a tripulação necessária, ele partiu em longa viagem pelos mares da vida. O céu estava limpo e as ondas apresentavam apenas umas marolas de dubiedade.

Muito transcorrera desde o último temporal. Como seria agora? O futuro era mestre das incógnitas; suas correntes marinhas, incertas. Ainda assim, ele reuniu uma tripulação calejada, sabedora dos mistérios marítimos e anímicos. Desta vez, trazia consigo até um cartógrafo! Não havia chance de erro.

Assim ele pensava.

Foi contornar o Cabo do Primeiro Imprevisto e as dificuldades começaram a se mostrar. O clima alterou-se, brusco, e o mar mostrava-se instável. Os homens, tidos por experientes, começaram a cometer erros básicos, amarrando cordames quando deveriam soltá-los, enfunando velas quando se deveria guardá-las. Sopraram ventos de direções jamais vistas. Bússolas e astrolábios eram inúteis, e o cartógrafo, ah, este não só não sabia onde estavam, como deixou os mapas caírem todos n’água. Em meio à balbúrdia, poucos notaram a muralha de nuvens escuras a rasgar o horizonte.

Sobreveio a tempestade.

Pânico geral. Ninguém escutava mais as ordens dele, cujos gritos logo foram engolidos pela ventania. O convés já pertencia às ondas, e os esforços desesperados e conflitantes da tripulação apenas ajudavam a acelerar o prejuízo causado pela tormenta. Não tardaram a perceber que o navio era uma ruína, aguardando apenas o último abraço das profundezas. Àquelas alturas, nem o capitão conseguia ser dono de si.

Reuniu os poucos homens que não haviam sido levados pelas águas e desceram todos em um bote, na louca esperança de sobreviver a uma borrasca impiedosa. Depois de subirem e descerem várias ondas do tamanho de morros, sentindo o garrote da morte sempre próximo, a procela amainou e chegaram no que parecia ser a boca de um estuário.

O líder estranhou. O vendaval havia derrubado grandes porções de folhagens e árvores que, noutras circunstâncias, ocultariam aquela saída para o mar, e isto no momento exato em que  navegavam por ali. Até a brecha era de um tamanho bom para a passagem do bote, mas não para a de um navio como o que tivera há pouco tempo.

Tudo conveniente demais. Armadilha ou destino?

Ordenou que remassem.

Embrenharam-se por um período indeterminado em uma rede de rios. Conforme avançavam, a mata fechava-se mais e mais. Às vezes, juncos, aguapés e ninfeias cobriam as águas, tornando tudo um verde vasto, sufocante. O ar tinha uma gravidade incomum, lembrando uma grande e impaciente espera. Mas de quem?

Apesar da sensação opressiva, não haviam encontrado animais ou nativos hostis, só diversas espécies diferentes de mosquitos, todas muito incômodas. O silêncio insistia, e, assim parecia ao chefe da expedição, convidava. Os homens mantinham superstições arraigadas de lobos-do-mar e medos correspondentes: queriam voltar. Imploraram ao capitão, este foi irredutível – acabaram por obedecê-lo.

Chegaram em um grande lago, cortado ao meio pela amurada de uma antiga construção, da qual a parede era o único vestígio. Próxima à muralha, jazia a figura imensa de uma mulher deitada, semiencoberta pela água. Em sua delicadeza, destoava por completo da paisagem agreste.

Nenhum dos homens saberia dizer se era uma estátua ou uma mulher real. Aproximaram-se. A pouco mais de dez metros, sentiram. Foi como que um pulso ou emanação: de qual espécie, não podiam dizer. Mas vinha dela. Avançaram mais alguns metros e os seis membros restantes da tripulação agarravam as próprias cabeças, emitiam berros e logo pularam na água .

Alguns deles enroscaram-se em plantas aquáticas e afogavam-se conforme se debatiam. Outros, depois de alcançadas as margens, punham-se a correr, enchendo a mata de uivos. Só restou o capitão que, embora transido de medo, remava. Contra o medo, contra aquela força misteriosa que enchia sua mente de pesadelos, remava. Quando estava tão próximo da mulher que poderia tocá-la, ela se mexeu.

Abriu devagar um dos olhos, muito devagar, observando-o sem pressa. Então virou-se de costas para ele e afundou com rapidez no lago. A água permaneceu lisa, imóvel, como se um corpo daquelas proporções nunca tivesse estado ali.

Mas o capitão ainda a via, dentro da água, a chamá-lo com o olhar. Aquilo que ela provocava nele seguia com intensidade crescente, numa cadência insuportável. Apesar do frêmito e do medo mortal, ele a queria, mais do que qualquer outra coisa, mesmo que descesse para o abismo.

De pé na proa do bote, entreteve umas poucas dúvidas, e logo estas definharam. E daí se lá havia escuridão, se perdera o navio e seus homens, se estava para perder ainda mais? Havia beleza dentro da água. Mesmo que escondida na mais profunda das profundezas, ali estava ela, chamando e chamando, e como não havia de querê-la?

Livrou-se das roupas e mergulhou.

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