Nem o branco do olho de Damião escapou de ser defumado. Era quase amarelo. Escondia uma tristeza
de anos. Não se sabe quantos, mais de cem. E tinha um fio esperança ali.
Agora preso em 3×4, antes a um passado doído.
No currículo, trazia escrito a experiência em cana. Corte de cana, por mais de trinta anos.
Além das memórias, não guardou mais nada, nem um vintém.
À noite, depois de engolir gororoba qualquer, era na fogueira que encontrava o calor para poder dormir.
A dança, o canto, a capoeira inundava de alegria o corpo sofrido. O olhar fixo no fogo espelhava a chama que ardia.
Era na imaginação que se sentia livre. E era. Ninguém escraviza o pensamento, o sonho. Nesse lugar
qualquer um é livre.
E como lidamos com o que é duro e não podemos mudar faz toda diferença.
Era preto, e tinha orgulho disso. Sabia o valor de honrar o sangue. Saltava aos olhos o semblante altivo
encarando a vida, o outro.
Queria arrumar um emprego, se arrumou que nem dotô, de gravata e camisa.
Foi parar na mineração de carvão onde seguia defumando em péssimas condições de trabalho.
E por anos honrou cada dia de labuta forçada. Sim, não havia escolha, não teve oportunidade para
aprender outra coisa que lhe garantisse o pão.
Nunca fugiu da senzala, que dirá da raia. Enfrentou o sinhô e reclamou melhores condições. Foi
presidente do sindicato.
Morreu de doença pulmonar nascida do trabalho.
De tudo, o bonito é que hoje, da história triste, Davi Damião carrega o nome em homenagem ao bisavô, já que conseguiu se formar engenheiro e pesquisador.
Alguém sensato desenhou política pública de acesso ao nível superior e depois de incentivo a pesquisa
de energia renovável. A mina de carvão ficou para trás, assim como o desmatamento e o desumano abate de gente em série.
O combustível se renovou e a esperança que havia nos olhos de Damião hoje é algo concreto, mostrando que o sonho de um pode transformar o futuro.