Retrato de nós

Maria é uma mulher de encantos. Quem a vê sorrir, desconhece suas lutas, suas dores.

Mas não seria esse o mistério que a todos enlaça? Por fora somos uma cidade cosmopolita, visitada por muitos. Por dentro, um pedacinho de terra perdido num canto qualquer do mundo.

No final das contas, o que lemos do outro é sempre um resumo mal feito do seu conteúdo total. É com base em poucas linhas que nos apressamos em julgar o todo. Tomo de exemplo um ocorrido comigo. Há pouco tempo chegou em minhas mãos um retrato de mulher. A partir da observação, eu deveria emitir minha impressão a seu respeito. Comecei por nomeá-la Maria, a título de apresentação.

Deixou-se fotografar vestida de impecável branco. No peito, a imagem de Iemanjá.

Ao redor do pescoço, as guias de proteção dos seus orixás. Dentre elas, a de contas azuis se sobressai e faz par com seu turbante de igual cor. Saia rodada de renda com bainha em bordado dourado para delicado arremate. Nos braços carrega um cesto de balas de coco, embaladas em papéis de cores vibrantes. Um casaco preto e meias brancas a protegem do frio. Sorri com parcimônia.

À primeira leitura sou capaz de afirmar que Maria é uma mulher casada, pela aliança de ouro no dedo anelar, e de muita fé. Filha de Iemanjá com Oxalá. Tem por ofício a venda de balas nas ruas do bairro. Isso já seria suficiente se os julgamentos fossem formados apenas pela realidade do que se vê. Mas toda impressão é decorada com os preconceitos e com os padrões que nos compõem.

Comigo não é diferente. Crio uma Maria que acredito tímida pelo sorriso comedido. Caprichosa pela roupa alva e bem passada; cuidadosa pelo uso da máscara de proteção. Imagino que seja vaidosa dada a elegância com que usa o turbante. Mais parece um estandarte. Do mesmo modo, suponho que seja baiana, não porque algo do espaço se revele, mas pelo estereótipo que associa a Bahia ao candomblé. Intuo que a senhora da foto sofre de algum mal, pelas medicações que vejo no fundo do cesto. Me compadeço com sua dor e sua luta, mas não sem antes julgar que o casaco preto não combina com a paz do branco de suas vestes.

Repleta das minhas certezas, me permito um momento de ignorância: será que as dificuldades vividas por Maria hoje a fazem questionar sua fé? O zelo com sua aparência é mesmo capricho ou apenas devoção as suas entidades? Estará doente ou os remédios foram comprados para alguém de sua família?

Casada? Ou uma viúva ainda enlutada?

A única verdade que posso afirmar é que Maria nasceu mulher. Tudo mais é um resumo banal de uma obra rara, única. Por fim, concluo: mais saberei de Maria quanto menos confiar que sei.

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