Para os que estavam certos de serem filhos de Deus, eu gostaria de dizer que milênios antes D’Ele ser imaginado, já estava por aqui a Mãe.
Com Ela demos os primeiros passos naqueles litorais de África.
Iniciamos pretos, e caminhamos de pés descalços, geração após geração, olhos fixos no horizonte, caçando, pescando, coletando o que Mãe frutificava.
Contávamos histórias, enquanto Estrelas nos ouviam e Lua dançava no céu.
Lua devia ser fêmea pois ficava cheia e gorda, igual às mulheres em sua misteriosa capacidade de gerar bebês. Também, por vezes, ficava vermelha – igual as mulheres que sangravam e, ao contrário dos homens, não morriam nem ficavam doentes quando perdiam sangue.
Quando a noite acabava, despertávamos com o sol, que surgia de seu esconderijo nas profundezas. Continuávamos nossa caminhada. Descobrimos onde se esconde a água no deserto.
Fizemos amizade com o indomável Fogo, e ele nos doou toda sua alquimia e cozinhou nossos alimentos.
Nos alquimizamos, transformando a nós mesmos a cada passo.
Conhecemos o frio e fizemos roupas. Perambulamos pelo mundo junto com manadas, tendo lobos e tigres de companheiros. Colhemos raízes e sementes.
Um dia Mãe notou que na terra, próxima do pequeno potinho onde guardava os grãos, nasceram plantinhas. Resolveu experimentar com uma semente e, ao invés de colocá-la no cozido, a enterrou, como se usava fazer com os mortos. Supôs que o grãozinho morreu sufocado no fundo da terra, mas, passados alguns dias, ressurgiu das profundezas, na forma de uma plantinha que deu novos grãos.
Nasceu a agricultura e, naquele mesmo tempo, nasceram os primeiros deuses masculinos que, mais tarde, dividiriam os espaços do mundo entre três reinos: céu, terra e mar.
Na superfície da terra o homem sentiu que era muito parecido com os deuses. (Ou seriam os deuses parecidos com os homens?)
Daí o homem resolveu que tudo na terra a si pertencia. Deixou de seguir manadas, aprisionando os animais. A terra não poderia ser de todos, pois gerava preciosos frutos que ele pensou serem exclusivos seus. Cercou os campos e restringiu a liberdade de tudo o que julgava seu pertencimento: animais, terra, casas, mulheres, crianças e estrangeiros.
Nasceram as guerras e na terra se derramou um sangue inútil, sem sentido.
Mãe ficou chocada. Os homens esqueceram que nasceram pretos, vindos de uma mulher.
No espaço de poucos milhares de anos aqueles homens acabaram com a coerência de Sua Obra. Acharam que eram os únicos filhos de um nascimento paterno.
Mas um dia, uma mulher disse não, um negro se revoltou, um ameríndio evocou: Mãe!
As estrelas brilharam mais forte, pois uma nova história estava surgindo na boca do povo das fogueiras da noite. Eles contaram que Mãe estava dizendo basta e que a terra estava renascendo.
Uma semente foi plantada, para morrer, perder a pele e renascer como Árvore da Vida.