Primavera em prantos

No final da tarde de outubro, castigada com a incessante e fina chuva que insistia em deslizar por seu guarda-chuva, Júlia se desloca para seu apartamento. No centro histórico da metrópole seus sapatos não dispõem de aderência sobre o calçamento “pé-de-moleque”, o que a força a redobrar a atenção para evitar queda desastrosa e vexatória.

Atravessa a rua acima do viaduto e avista um casal jovem de máscaras. De imediato pensa como se beijarão de máscaras?

Tratou de retardar o passo apressado para poder esquadrinhar melhor a cena que descortina diante de seus olhos. Estarão brigando? Em tratativas de reconciliação?

Logo, seus esforços foram dirigidos aos amantes, absortos sob a primavera chuvosa. Quanto mais se aproxima, melhor pode avaliar a relação. Escuta, com certa dificuldade, pelo abafamento do som provocado pelas máscaras, que estavam mascarados porque o rapaz está doente. A enamorada diz que nos próximos dias não poderão beijar-se pois ele havia sido diagnosticado com mononucleose, ou, “doença do beijo”.

Júlia ficou pensativa. Como poderiam namorar sem beijo?

Com o olhar ternuroso, rememorou que, em seu último relacionamento, com a distância imposta pelo trabalho de Renato, passavam pouco tempo juntos. Quando podiam apreciar a companhia um do outro, permitiam-se os toques demorados, as trocas de carinho suave e o silêncio sossegado debaixo das cobertas de matelassê. Por que terminamos?

Voltou-se para sua realidade. Subiu rapidamente as escadarias do prédio e, ao desfazer-se das sapatilhas ensopadas, aconchegou-se no sofá de linho cinza e ligou para Renato. Iniciou uma conversa sem jeito, mas, aos poucos, foram retomando o relacionamento perdido.

Na data marcada para o encontro, na elevada próxima da sua residência, Júlia está deslumbrante: cabelos castanhos claros escovados e soltos, maquiagem suave, vestido de crepe discretamente colorido e um scarpin de salto baixo – imagina escorregar nessas pedras?

Para sua surpresa, Renato apresenta-se de calçados vulgares, calça jeans, camisa e de MÁSCARA!

Associou de pronto à mononucleose. Andou beijando muito por aí?

Desse modo, Júlia descobriu a pandemia de Covid-19.

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