Quem quiser saber quem sou
Olha para o céu azul
E grita junto comigo
Viva o Rio Grande do Sul
(Querência amada, Teixeirinha)
Chego à cidade e sou recepcionada pela estátua do Laçador. Um monumento de bronze de aproximadamente onze metros de altura, somado o pedestal e sua coxilha. O homem pilchado representando o povo rio-grandense. Quem chega, sabe: estou na capital gaúcha. Obra do artista Antônio Caringi que teve como modelo Paixão Côrtes, um dos fundadores do movimento tradicionalista. Mais tarde, reconhecida como patrimônio histórico estadual e símbolo oficial da cidade. As escolhas não são aleatórias.
A iconografia que perpassa os monumentos urbanos nos conta sobre as disputas de poder entre a nova e a velha ordem. O gaúcho, homem dos pampas, que vê a campanha como sinônimo de liberdade e aventura, representa um povo que necessita construir uma identidade em oposição à ordem estabelecida. Vinte de setembro, feriado estadual, Dia do Gaúcho. Dia do início da Guerra dos Farrapos – uma das três guerras civis contra o Império. Nada é por acaso.
O uso dos monumentos como instrumento de construção ou reforço da identidade coletiva nem sempre significa ruptura com o estabelecido. Na minha cidade há a estátua de Araribóia de frente para a Baia da Guanabara. Araribóia – que significa “cobra feroz” – foi um chefe indígena Tupi que desempenhou papel importante no processo de consolidação do domínio português, lutando contra os tamoios e franceses. Como recompensa, recebeu uma sesmaria onde hoje se encontra a cidade de Niterói. Dizem que sua personalidade foi inspiração para José de Alencar n’O Guarani. Araribóia é símbolo de guerreiro e, apesar de aliado dos portugueses, foi altivo ao cortar relações com eles quando o novo governador criticou seu comportamento.
Apesar de o Laçador não ser uma pessoa específica, aproxima-se de Araribóia, pois ambos representam um modo de vida e se contrapõem ao colonizador, cada um a sua maneira. Além disso, ambos compõem a memória histórica de suas regiões e, ao mesmo tempo, estão inseridos na trama visual da cidade moderna. O culto ao tradicional é apropriado pela dinâmica urbana: o ir e vir cotidiano dos transeuntes, o trânsito intenso dos veículos, os movimentos populares com suas faixas e gritos de protesto, as fachadas dos prédios modernos, os letreiros luminosos e, até mesmo, o piche a monumentos públicos. A cidade contemporânea com sua fluidez e os monumentos históricos com sua rigidez ressoam um no outro. Talvez essa seja a beleza da memória: ver o passado com os olhos do presente.