Ser ou não ser

Envelhecer acontece de súbito. Não, claro que não é bem assim. Mas a gente vai vivendo, sabendo que o tempo está passando e nos trazendo suas marcas, só que segue assimilando muito aos poucos, como se ainda mantivéssemos toda a energia e saúde da idade da última década vivida. Sente uma dorzinha aqui, já não tem a mesma desenvoltura para caminhar, os olhos insistem em se dirigir ao horizonte sem auxílio das lentes, só pra descobrir que a paisagem se mostra desfocada. E vai-se absorvendo essas mudanças como pequenas diferenças, sem perceber que estão se incorporando como uma nova realidade.

Então – bum! – de repente acontece: os pequenos sinais se tornam companhias permanentes. As dores eventuais agora são constantes, os passos são inseguros, as lentes viram acessórios imprescindíveis. Ao nos vermos retratados em uma foto, que algum insensível tirou e ainda teve o atrevimento de nos enviar, a percepção explode: sou eu essa velhinha meio encurvada, de cabelo branquinho e rugas que aquele creme milagroso prometeu esconder? Como foi que o espelho me enganou esse tempo todo? O artifício de se mirar no espelho nunca muito perto e sempre no melhor ângulo de repente se revela inócuo: sim, estou velha.

É como ver a foto de algo refletido na água: de um lado, uma paisagem límpida e vibrante, do outro, a cena turva, imprecisa. Ou ainda como se olhar para algo conhecido, agora através de uma superfície diáfana; pode-se adivinhar o que está além, afinal se trata de uma cena costumeira, mas de repente compreendemos que não tem a mesma definição, a mesma nitidez da imagem que guardávamos na memória.

E aquelas pequenas gentilezas, que costumávamos aceitar como cortesia, agora constatamos que mudaram de sentido, são como uma obrigação social, afinal, é preciso ter respeito pelos velhos. Claro, não vou dizer que isso é ruim, mas por que diabos eu, que sei que aqui dentro trago muito da jovem que fui, vou aceitar tranquilamente a cadeira oferecida por aquele jovem? Muito obrigada, ficarei aqui, com os pezinhos doendo, mas tentando acreditar que ainda mantenho autonomia.

E garçom, se me chamar mais uma vez de vovó, eu vou quebrar esse bar! Sim, sim, com a minha bengala!


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