Marshall Arisman por Marcia Ribeiro

Toma que o lápis é teu,

Marcia H de M Ribeiro.

Mas hoje não estou inspirada. Talvez efeito de recente experiência de crítica mordaz a um texto penosamente escrito. Como manter o lápis trabalhando sobre o papel se quem o oferece morde?

O dicionário acolhe muitas palavras mordedoras. Os adjetivos. Eu e eles não mantemos uma relação amistosa por sua vocação reducionista. Desconfio que o mal-estar começou na escola da primeira infância.

A professora pedia que a gente qualificasse com uma ou duas palavras o que tinha pensado de tal ou qual coisa recentemente estudada. Não entendia como algo podia ser representado com tamanha escassez de palavras quando tinham evocado tanto em mim. A tarefa era suficiente para a folha do caderno ficar amassada, manchada, e as palavras, por fim escolhidas, permanecerem à sombra dos rastros do escreve-apaga reiterado. Os cadernos escolares daquele tempo eram costurados, assim, arrancar a folha suja não era boa solução para esconder a dificuldade. Arrancando uma arrancavam-se duas. Baita dilema em tempos de penúria material: deixar a folha suja ou perder duas páginas?

O caderno revisado pela professora voltava com a advertência exclamativa folha suja, precisas ter mais cuidado e capricho com teu material. Nada sobre as palavras penosamente escolhidas. Só sobre ter sido desleixada na forma.

E desleixada me ficava adjetivado também no corpo. Se noutro dia o achocolatado pingava na blusa branca do uniforme na hora da merenda, pronto, lá estava o adjetivo, tal qual um monstrengo de boca aberta, ávido para me engolir inteira. Desleixada. Era preciso mostrar-se caprichosa. Não uma criança cheia de caprichos, bem entendido.

Escolher adjetivos ainda me assombra. Resisto. Penso e repenso, escrevo e apago (bendito editor de texto que agora mantém a folha limpa). Escolho com cautela, ainda mais quando o tema nasce da paixão, como nessa crítica, adjetivadora, aos adjetivos mordedores que aparecem só para engolir os substantivos.

Rolar para cima