senhoritas de avignon - CRONICA

Mesmice

Autora: Dora Almeida     

Maria cansou da mesmice.

Casa, trabalho; trabalho, casa. Tv.

Criança que chora, que cresce, reclama.

– Todo mundo tem celular novo, menos eu. Só este velho que não usas mais.

Marido escarrapachado no sofá, barriga saltando pelo botão da camisa que já não fecha.

– Traz mais uma cerveja. Pega a de cima que está mais gelada.

Jornal Nacional, novela, futebol. Caldeirão no sábado. Mais futebol no domingo, dancinha dos famosos. Fantástico!

Vento soprando pelas frestas da janela que o marido não conserta. Noite de vento, noite dos mortos, dizia Maria Valéria.

Maria decide que não está morta.

Consulta o saldo no banco. Nunca foi mulher de luxos, jamais gastou todo o salário. Seu décimo terceiro sempre foi direto para poupança.

Filhos crescidos, não precisam mais dela. Marido, escarrapachado no sofá.

É agora.

Tira licença do trabalho e vai para a Capital. Aluga JK na Cidade Baixa. Se der certo, fica.

Novos horizontes. Novos amigos. Vida nova. Bares, cinema. Livros, teatro.

Nova Maria em suas novas roupas velhas de brechó. Cabelo azul. Novíssimo.

Noite dessas, chegando em casa, liga a Tv. Saudade nova.

Dos filhos reclamando, do marido escarrapachado no sofá.

O vento zune pela persiana. Aqui também.

Olha as horas. Se se apressar, ainda pega o ônibus de uma da manhã.

A mesmice não cansou da Maria.

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