A maré
Rubem Penz
Sim, contrariaram os avisos, os conselhos, as evidências. Contrariaram a lógica, o tempo, a lua – e contrariar a lua é sempre uma teimosia minguante. Era tanto voltar a si próprio, também um ao outro, que findou por chegar tarde a razão – e os avisos, os conselhos, as evidências, a lógica, o tempo, a lua.
E já não se podia prosseguir remando pois, nem concordando com o destino mostrado na bússola, o barco sairia do lugar. Uma secura gradual, lentíssima e indelével acometeu sem que um ou outro admitisse. E chegou a sede, o sono, o tédio. A fome que não sacia com sonhos. O que antes se chamou refúgio, virou prisão. Nau frágil.
Quem se importa mesmo em saber de qual foi a ideia de descer primeiro? E a quem coube a iniciativa? Irrelevante ao barco agora vazio, ao solo de charco, à vida que vive e responde aos ciclos. Cada um por si, a seu modo e no seu tempo, revisitaram o período de maré vazante. Revoltaram-se, lamentaram, compreenderam. Aceitaram, enfim – e neste meio solo e meio água à meia canela não há pegadas a serem perseguidas para o reencontro.
O que seria dos dois se esperassem até a troca da maré permanecerá um mistério. Ou melhor, uma especulação. Cenários criados para afundar mais ou salvar-se. Ou morrer, quem sabe. Não, ninguém sabe. Sábios olham para a lua. Nova, crescente, cheia.
E o barco? Lá permaneceu sem quem o conduzisse quando o mar retornou outra vez em eterno pleonasmo. E vagou vazio – ninguém apareceu em resgate. Hoje pode não mais existir – teria se chocado contra as pedras? Teria soçobrado numa onda mais forte? Estará à deriva em alguma infindável calmaria?
Tanto faz quando já não há remos ou remédio.