Perdido no meio da rua estava o par de sapatos. De quem será? Já tinha encontrado um pé só, roupas rasgadas e sujas, cueca e até calcinha de mulher. Não raras vezes esses pedaços de roupas ou até peças inteiras encontradas na luz do dia denunciam violência na noite. Estupro? Agressões corporais? O submundo da madrugada na rua. Mas nunca havia encontrado um par de sapatos. Pensou em várias hipóteses, alguém que precisou sair correndo de um perigo iminente como um assalto ou um carro desgovernado… mas precisaria que estivesse bem mal atado. Novas hipóteses, talvez uma pessoa em situação de rua, que tivesse ganho um sapato maior que o pé. Ou talvez um bêbado ou usuário de droga com a consciência tão alterada que perdeu o sapato e não lembrou de calçar. Enfim.
Os sapatos eram velhos, muito velhos. Talvez de alguém muito pobre usando um de segunda ou terceira mão doado por algum morador de um bairro de classe média, só para não ver o sujeito andar com o pé no chão. Lembrei de um cuidador de carros, há décadas trabalhando na rua neste serviço. Dizia que pé de pobre não tem tamanho, colocava jornal na ponta se o sapato fosse maior que o pé.
Muito triste a situação dos que moram na rua. Muito mais para quem vive mas também para quem os vê, vulneráveis e desamparados. É ruim para toda a sociedade, para a dignidade humana, deles e nossa. Muita água rolou para chegarem a esta condição, muito desamparo social, econômico, estatal, familiar, desemprego, etc. Muita injustiça tributária e concentração de renda na mão de poucos. Sim porque no Brasil a classe baixa e média são quem mais paga impostos, os bilionários pagam muito pouco, o que gera pouco dinheiro para melhoria dos serviços públicos e gerações após gerações de miséria. Nos últimos tempos têm aumentado esta população, a pandemia, dizem, também colaborou para ampliar este quadro. Espero que as políticas sociais atuais, se não resolverem, pelo menos o atenuem. Mas deveriam resolver de vez.
Com tantos edifícios abandonados, sem uso, por que não os transformar em moradia? Há estudos que mostram que o número de unidades abandonadas cobriria o número de moradores de rua do Brasil. Não precisaria nem construir novas habitações, o que é mais oneroso para os cofres públicos, bastaria consertar as que já existem. Uma lei prevê que habitações sem uso social devem ser transformadas em moradia para a população, mas não é cumprida como tantas outras leis. Os movimentos sociais por moradia tentam efetivar o que está previsto na legislação, ocupam os prédios abandonados e sem fim social. Embora não seja considerado crime, são expulsos e punidos pelos ditos agentes de segurança estatais – por tentarem fazer cumprir a lei. Sapatos colocados na soleira da porta de casa, isso sim é dignidade.