Reflexos em poças de água dificilmente não rendem belas imagens. Quando me deparo com algumas destas obras meu pensamento é levado a tentar ver além do que aquela imagem apresenta ao meu olhar. Hoje me encontrei com essa.
Poderia descrevê-la: um grande alagamento próximo à calçada de uma cidade apresenta o reflexo de dois lados da rua. À esquerda dessa superfície de água há dois edifícios; um de cor rosa e outro branco; três pedestres em deslocamento, um outro parado encostado em um poste; dois troncos de árvores, uma delas com galhos e folhas; um carro. À direita dessa mesma superfície de água parece existirem vários prédios. Algo me diz que preciso ver mais do que essa água reflete. Me debruço sobre a foto e fico vendo o tal prédio cor de rosa-pós-chuvarada.
Muita gente circulou nele. Também pudera! Foram quase dezessete anos de construção desse que foi o primeiro maior prédio da cidade alegre. Figuras ilustres – com suas melhores vestes, ouro em braços e pescoços, bengalas com cabo de madrepérola – caminharam pelos corredores, sentaram-se à belas mesas de jantar, ocuparam quartos, debateram sobre política, arte, negócios. Amores iniciaram e também terminaram aqui. Quantas histórias – conspirações, negociatas, dramas, comédias, romances – bem contadas e mal contadas, estarão escondidas nessas paredes pintadas da cor de rosa-segredo!
Agora, cerro os olhos e ouço música. Vozes masculinas e femininas. Uma mulher toma conta do meu ouvir com estas frases musicais: Olha o arrastão entrando no mar sem fim, é meu irmão me traz Iemanjá pra mim. Esta alegre cidade tem um rio que não é rio, mas onde tem peixe e as pessoas comemoram, em águas doces, no mês de fevereiro, o dia desta rainha cantada – Iemanjá. Que voz tem essa cantora! Poderia dizer a ela (se eu pudesse) que inscrevesse sua voz na Ordem dos Músicos desse país, como se fora um instrumento musical, de tão linda que é. Decido abrir algumas janelas do prédio cor-de-rosa e, com os olhos abertos, sigo vendo belezas através de suas paredes.
Livros infanto juvenis. A garotada parece gostar de ler nessa alegre cidade. Chego bem perto da placa da entrada da sala e vejo, no texto nela gravado, um nome feminino de época, Lucília Minssen – 1956. Sim, existem nomes conectados a determinados períodos da história. Leio que Lucília foi a primeira mulher pós-graduada desse Estado e, também, a primeira figura feminina a assumir o cargo de diretora na Biblioteca Pública Infantil da capital. Pelo que estou vendo, esse prédio alto, grande, paredes pintadas com cor de flor, acolheu gente com ideias e ideais arejados. Olho a hora no relógio e tenho pouco tempo. Não conseguirei ver todos os aposentos cobertos pelas paredes roseadas. Próxima janela.
Um quarto. Simples, tudo muito simples. Chamam minha atenção: a máquina de escrever, o quadro – Chaplin e o menino e mais literatura. Outro espaço com livros. Este eu sei quem ocupou por muitos anos, pois tem uma foto dele atrás da cama. Um quase nômade, morador de quartos de hotéis da cidade alegre.
O alarme do celular toca e eu paro de ver além dos reflexos dessa poça de água. Preciso de mais horas para visitar todo o espaço geográfico ocupado pelas paredes rosa-saudade do Majestic, o hotel que acolheu a Majestade Mario de Miranda Quintana e sua imortal máquina de escrever. Ao cruzar a porta do pequeno quarto de pensão no qual resido, a frase desse soberano, ecoa em meus ouvidos: Eu moro em mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder as minhas coisas.