Poeira

Perspectiva. Tudo é uma questão de perspectiva. De longe nem parece tão alto, de perto não parece tão sólido e de cima a ventania e a luz do fim da tarde mudam o ângulo e o tom de tudo que eu estou sentindo. É quase perfeito. Pode ser que a água consiga molhar os meus pés, pode ser que o meu sorriso reflita o último raio de sol. Sorrir também é uma perspectiva.

De fora são meus olhos fixos na luz de um farol, úmidos mesmo que o vento sopre e resseque a voz que não sai da minha garganta. O balanço do vestido e o arrepio das pernas poderiam ser como o rodopio ao som de uma valsa, mas se parecem mais com a sinuosa esteira de sutis passos: um à frete, um atrás. Da fome que eu nunca senti na vida, um menino de longe cuidando os carros por algumas moedas. Na sua frente o mundo correndo com sede de água de coco e bicicletas com marchas. Pouco importa para os que passam. Eu também passei.

Por dentro é a moldura de um quadro, quebrada em pequenos pedaços afiados. Uma fita adesiva segura o que restou do vidro, do quadro e das farpas agudas. Daqui as pessoas são como formigas. Do alto não aparecem as importâncias e as belezas. Todas fazendo o que todas as outras fazem. Eu sempre fiz o que todos fazem também e por um tempo fez sentido.

Tudo parecia ir bem enquanto os prédios eram iguais, as paredes eram brancas e o meu copo continuava meio cheio. Há alguns dias em que se esvazia e os alicerces derretem enquanto os pilares descascam uma sequência de cores opacas: verde nada, rosa pálido, amarelo sombrio. E assim a cidade envelhece como as marcas que o tempo fixa na minha testa: um desgosto, um arrependimento, um pecado.

Me senti tão frágil que me despi dos sonhos nesse horizonte sempre azul que não encontra infinitos, mas curvas e desvios. Os pés descalços sempre foram meu impulso e por isso toquei o chão sujo e senti a poeira por entre os meus dedos de um jeito incômodo e sofrido. Coisas pequenas atrapalham, coisas grandes não permitem ocuparmo-nos só com elas. As dores também têm perspectivas.

Trocaria enlouqueceu por entristeceu, mas demorei tanto tempo para entender que era isso que me fazia chorar que precisei de um espelho maior, de reflexo imenso, que me fizesse enxergar o sentimento com a potência dos desafios. Permitir-se não é só uma liberalidade, também é um freio de cordas firmes nas nossas costas, como um andaime que equilibra o peso das palavras da mesma forma que o meu corpo solto desafia o salto.

Eu não saltei, mas me permiti. São perspectivas.

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