Ela queria ser artista, eu, navegante. Deitados na grama diante do lago, brincávamos dizendo que o barco que passava lá no fundo ficaria mais bonito se fosse engarrafado, feito souvenir. Ela ria e dançava à minha volta, cantando, simulando, dúbia como Rita Hayworth em Gilda. Por trás dela, meu sonho cruzava as águas, mas eu só tinha olhos para sua performance. Sereia, estrela, paixão. Nunca houve uma mulher como ela, eu repetia.
Mas ela me deixou quando eu disse que somente dela eu precisava. Assustou-se quando me ajoelhei e ofereci uma aliança, para sempre. Ofertei minha liberdade, meu amor num pacote só, minha necessidade, mas nos seus olhos vi ruptura. Nas suas lágrimas eu vi o reflexo da minha arrogância. E, ainda assim, eu só pensava: eu estava pronto, ela não.
Próximos no desconforto de cada encontro, nos distanciamos. Juntei meus trecos e cacos, atulhei minha velha mochila com uma muda de roupa e um punhado de desilusões. Sem fôlego, eu precisava respirar. Embarquei, arrisquei minha ventura, dei com os burros n’água, comi do ruim e do pior, bebi do fundo do poço. Mas fui paciente e teimoso, arrogante ainda, mas em boa medida, acho. Agora viajo num barco construído com meus pedaços, nem novo, nem velho, só desgastado. E flutuo, a despeito dos buracos que aparecem lá e cá. Vida, vento, vela, leva-me daqui.
E este mesmo vento, um dia, trouxe uma mensagem. Não dentro de uma garrafa, não ao léu: um amigo me contou que um amigo lhe contou que ela, sumida, tinha se revelado. Virou artista, disse ele, e estava à distância de um canal. Ajeitei minhas velas, calculei o azimute e lancei meu barco naquela direção. Tendo a bússola como companheira, atravessei vagas e marolas, nós sobre nós, até que cheguei, entardecido. Atraquei num pier cercado de casas flutuantes e muralhas da Idade Média. Sobre uma das centenas de pontes, jurei que desta vez seria diferente, e segui pelo caminho indicado, desviando dos ciclistas que surgiam das ruas e vielas, alguns apressados, outros não. Vi moinhos de vento ao longe, e tulipas. Ouvi o sapatear dos tamancos de madeira contra o asfalto, soando como um desafio. Já era noite quando cheguei no vibrante, vivo e vermelho bairro de néon.
Sem demora, eu a encontrei. Sem demora, observei seu rosto, sua dança, a boca que se mexia cantando só pra si. Num gesto sensual, ela retirou uma das luvas, pretas, que cobria todo o braço e, sem querer, olhou para mim. Acenei, esbocei um sorriso e me ajoelhei, estendendo a mesma joia, propondo a mesma aliança. Ela sorriu de volta, condescendente, e, soprando um beijo, devolveu o aceno, mas em forma de adeus. E desapareceu para além da vitrine. Foi a última vez que a vi. Ali, diante de mim, ficou só uma certeza: ela estava pronta, eu não.