Panóptico

Chegava na Otávio Rocha por volta das quatro da tarde, e ficava perambulando entre as bancas de jornais e as floristas com suas rosas resfriadas. Garimpava figurinhas recém-chegadas, pois detinha a informação sobre novas remessas provindas do centro do país, com destino a Porto Alegre. Metia o conteúdo nos bolsos da jaqueta surrada, não antes de abotoá-los cuidadosamente. Ah, mas antes disso – é bom lembrar – penetrava no Café Haiti e pedia o combo de sempre: uma taça de pingado com um farroupilha. Comia pausadamente. Alongava, através da espera e risinhos nervosos, o prazer da futura aquisição.

Era notável que se considerava um colecionador exemplar.

Logo após uma compra às cegas, sentava-se no banco de concreto reservado aos transeuntes, aos cansados e aos pedintes do passeio público. A textura rugosa do envelope singelo convidava-o a cheirá-lo. Embebido da experiência, procurava o melhor ângulo e rasgava-o inaudivelmente. Bem, mas antes de se consumar esse ritual, como regra, projetava o papel manteiga do envelope contra a luz, buscando adivinhar as silhuetas e as cores sagradas àquele invólucro carimbado em azul. Os olhos brilhavam sob as mãos trêmulas, a respiração tornava-se mais profunda e o coração fazia-se ouvir pelos passantes: Pelé, Pato Donald, Dina Sfat, Dick Vigarista? Sim, acertou, eram todos esses e mais o urso polar, o Zé Colmeia, o Tony Ramos, o Mancha Negra e o Sócrates. As figurinhas do momento, e as nostálgicas. Ele espionava os detalhes daqueles protagonistas de mundos tão diferentes entre si, expostos em seus álbuns quase completos, não fosse por aquela figurinha lendária, impossível de se encontrar. No entanto, nos seus domínios, reinava absoluto.

Como um bom colecionador, colecionava incompletudes.

Nos dias pares da semana esse sujeito reaparece a minha frente entre a carga tóxica do transporte público e os escambos ouro-compro-ouro-cabelo-alma. Feito presa, meus olhos de lince o tornam alvo. Posiciono-me e o imobilizo num instante fotográfico. Espero a novidade, o instante raro, a revelação de uma cena desfocada, olhares cruzados. Por detrás da película que nos distingue, me sirvo de seu fútil desejo ao acariciar sua inútil ambição.

Como uma espectadora obssessiva, coleciono disparos.


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