Essa crônica é sobre amizade

E, dessa forma obriga-se a falar de perdas. Porque só perde quem um dia teve. Às vezes penso que esse pode ser o motivo de o ser humano muitas vezes sucumbir à solidão, para não ter que lidar com a falta. Como pertencê-la sem se extraviar, ou ainda, sem declinar do mínimo que possui, a si mesmo? Aprendemos a chorar, aprendemos a não nos desfigurar, mas fica a dor daquele parte de nós que se foi, arrancado pelo destino, subtraído sem despedida. Sem um até logo, sem um “Valeu à pena!”.

A primeira vez que assisti à cantora Adriana Marques foi na Casa Branca, em Esteio, e seu grupo da época chamava-se Tocaia. Cerca de três anos depois surpreendo-me com aquela moça bonita e interessante adentrando a sala de aula e acomodando-se em uma das carteiras: pois então seríamos colegas no curso de Ciências Sociais! A que ponto pode chegar a generosidade humana, esta foi a frase que a resumiria, proferida por um de nossos amigos em comum, enquanto ela dividia um chiclete plets em quatro pedacinhos para assistirmos, entretidos e extasiados, a mais nova revelação da MPB, Cássia Eller, em seu show de voz e violão no campus universitário.

Anos depois, Adriana incorporou, ao lado de Simone Rasslan, a locutora Cat Milleidy, na comédia musical Rádio Esmeralda. Quem aqui a assistiu? A irreverência regada à breguice homenageava os antigos programas de rádio, com direito a ligações telefônicas para a plateia, consultório amoroso e pedidos de música. Dirigidas por Hique Gomez, Adriana e Simone tiveram uma escalada crescente de sucesso nos seus quase dez anos de Amor de parceria, nascida em 1990 quando então faziam parte do Bando Barato pra Cachorro.

Outra dupla marcante no cenário musical de Porto Alegre, Nico Nicolaiewsky e Hique Gomez, companheiros no longevo espetáculo Tangos & Tragédias, como o Maestro Pletskaya e Kraunus Sang, tocaram trinta anos juntos, sendo a maioria deles na rotina de shows nos janeiros.

Na década de 1980, o sonhado LP presenteado pela tia Edy, que me iniciou nas letras e no gosto pela música, já noticiava em sua primeira faixa que depois de ser amigo não vale o coração negar. Era a canção Xote da Amizade, composição de Mário Barbará, parceiro também nesse álbum do longínquo Musical Saracura: É preciso dar a mão, ô-yé, tem que se cumprimentar, ô-yé… E no Tango da Mãe, era a voz de Nico proclamando o que um dia a Sbórnia lançaria mar a fora: o nonsense, o político, o disruptivo. Haveria vida fora do coloquial e, a todos, seria possível dançar o Copérnico.

Num fevereiro de nove anos atrás o piano e o acordeon de Nico ausentaram-se das temporadas dos palcos, de sua casa, de seu corpo.

Num julho de cinco anos antes, Adriana esqueceu de nos avisar que a Rádio sairia do ar.

Pegos de surpresa, acidentalmente, sem querer, distraidamente: A Trágica Paixão de Marcelo por Roberta, e Chattanooga Choo Choo, ao encontro de um certo alguém que não os espera na estação.

Simone e Hique, mais Claudio Levitan:Nabiha, Kraunus, e o recém chegado Professor Kanflutz, ainda hoje persistem em nos testemunhar a existência da Sbórnia, esse país que, desprendendo-se de um istmo, segue livre em sua deriva por todos os mares da Terra.


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