A mãe foi uma mulher danada. Do tipo força da natureza, inexoravelmente humana como aqueles personagens de livros e filmes clássicos, que sempre dá vontade de rever. De garota levada a moça muito bonita, ela nunca foi de rodeios. Era nítida, transparente, de pulso forte, índole justa, e coração gentil. Senhora do seu mundo, dona do seu entorno. Um dia, sem mais nem menos, se tornou, além de mãe, pai. Valente, deu de ombros para as dificuldades e, praticamente sozinha, criou os cinco filhos. E virou avó, e continuou sua saga. Não sei muito sobre sua infância, porém. Pena, deveria ter sido mais perguntador, mais curioso sobre seu passado, e mais conversador naqueles preciosos momentos que vivíamos juntos. Mas a Vó dizia, me lembro, que ela fora uma espoleta, cheia de vida e inteligência. E deu um pouco de trabalho sim, a menina.
Não faz tanto tempo assim que ela partiu; parece que foi ontem, ou um minuto atrás. Na verdade, parece que não foi, só saiu para uma caminhada e volta logo. E, agora, está ali, sentada na varanda, na cozinha diante da máquina de costura inseparável, que dá vista pro jardim, no quarto cheio de livros, no quintal. Dentro de mim. Lembro do sorriso, do choro, da saúde, da doença. Lembro do colo, do rosto, do afago. Dela correndo pra rua quando o caminhão da laranja passava, ou quando o vizinho gritava pedindo ajuda, café, ou um bom papo. E lá ia ela aconselhar, dar sermão, comprar laranja. Me recordo da casa que ela levantou, pulso forte, quase uma mestre de obras, terror dos marceneiros e pedreiros – faz bem feito! E das muitas vezes que se conteve, e nos priorizou. Ternura, teimosia, sede de saber, vontade de ser. Danada, a Dona Nadir.
Amava seu jardim – mágico – que ela mesma cultivou, carregado de tudo quanto é flor e planta, todas nomeadas e paparicadas, como só uma mãe sabe fazer. Cuidava muito bem de todas, mas se derramava pelas orquídeas. Ah, as orquídeas! Sortudas, de nomes difíceis, ganhavam calor e adubo, água e carinho. E duplicavam a boniteza, e floresciam com gosto à sua volta, tipo boa música quando conduzida por maestro virtuoso. Dava gosto assistir. Era lida, leitura, novelinha. Abraçou todas as religiões, ampliou o coração, entendia todas as crenças, aceitava todos os pensamentos. Lia muito, a moça. Ensinava muito, a mãe. E dava vastos abraços, distribuía risadas discretas mas gostosas, e trazia pão de queijo quentinho. E pipoca na hora do filme. Paciente, ouvia, o “passa minha camisa, mãe, hoje tem festa!”, mas não abria mão da chinelada, se “fizer arte de novo”. Já sozinha tempos depois, por conta da imposição da vida, que segue, corava a bochecha quando chegávamos, e chorava na hora que partíamos. Dá vontade de nunca ter saído de casa. Mas é assim a vida, que segue. Ela entendia. Nós, filhos e irmãos soltos mundo afora, nem tanto. Éramos dela, e de mais ninguém.
Minha mãe foi embora como toda mãe vai: muito cedo. Mas ficou dentro de nós como toda mãe fica. O poeta escreveu: “Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho.” Algum Deus – qualquer um daqueles que ela louvou – deveria fazer valer o poema. Hoje, ainda mais, ela faz parte de tudo. De mim, dos meus irmãos, do nosso imaginário, do passado, do presente. É orquídea que não definha, coração que sempre bate, sentimento que permanece. Eu a vejo nos olhos de cada mulher mãe, cada amiga mãe. Cada irmã, cada tia, cada avó.
E sigo orgulhoso de tê-la conhecido, de a ela ter pertencido. Ela que deixou aqui seu tudo e um pouco mais. Um muito de amor. E uma só saudade… danada.