Duda e Marina são irmãs, e vivem num retrato. Com elas, moram o irmão menor, a Vó e o pai. A mãe não, a mãe morreu tem um ano. É um espaço mínimo, uma sala nanica que faz papel de cozinha e quarto para metade da família; e o quarto, por si só, onde fica a outra metade. Nestes cubículos eles se distribuíam, antes, conforme a mãe indicava. Agora não tem regra definida, quem estiver onde estiver, à noite dorme ali mesmo. Banheiro, só do lado de fora, num canto da comunidade, que fica no pé do morro. São todos pretos, na família de Duda e Marina. O que não deveria fazer diferença.
Mas neste retrato faz. Nele, como disse, antes tinha a mãe, Dona Joana, mulher de fibra, orgulhosa de um jeito simplório, feliz de certo modo, que gostava de aparecer com a família nas festas do morro, nas fotografias, nos compromissos das filhas, com a Vó sua mãe, com o marido dependente, abraçada ao caçula. Não aparece mais. Aconteceu noutra daquelas noites, comuns por lá. Ouviram-se tiros, a vizinhança gritava, mais tiros. Numa “investida surpresa”, a polícia militar invadiu ruas e casas “aleatórias”, em busca de criminosos, para “proteger a população”. No boletim, outras tantas aspas “explicavam” a ação. Mas não teve fogo cruzado, não teve revide. Não teve chance. Entraram no retrato da família – Mãos na cabeça! – e Joana, mãe, lavadeira, cozinheira, dona da casa, tentou argumentar. Mas sua pele negra e carcomida, estereotipada, suspeita, não permitia conversa: levou um tapa. “Por que o senhor me bateu? Por que invadiram nossa…” A coronhada que veio a seguir matou a mãe. Não foi com açoite, não foi no tronco, não foi na forca. Foi assim, na sala que vira quarto onde naquela noite ela dormiria com o pequeno. O pai foi preso, confundido. Soltaram dias depois.
Duda e Marina, de costas contra a parede de madeira gasta, mãos dadas, mantinham os olhos muito abertos, bonitos, arregalados de dúvida e angústia. Veio o horror e, com ele, lágrimas. O retrato agora era algo que elas só tinham visto na tevê da vizinha: violência gratuita, institucional, à domicílio, oriunda de um passado que não passa nunca. E que, aleatoriamente, escolhe sempre a mesma pele, da mesma cor, e invade, sufoca, mata o futuro numa única investida, de surpresa.
As estatísticas brasileiras apontam um padrão de violência policial desproporcional contra famílias negras. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pessoas pretas representam cerca de 77% das vítimas de violência policial no Brasil. Esse dado ganha contornos mais graves quando se observa que, enquanto o número de vítimas brancas tem diminuído, o de vítimas negras segue em crescimento. As ações policiais ocorrem frequentemente em comunidades carentes, onde as operações se tornam rotina, e a presença da polícia, em vez de proteção, traz medo e insegurança.
Meses após aquela noite comum na comunidade, aos pés do morro, pouco ou quase tudo mudou no retrato da família. Agora uma só metade vive ali: Duda e Marina, o irmãozinho e o pai.
A Vó não, a Vó morreu de desgosto.
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