1 Carla Penz

Réquiem

Fujo da morte. Caminho por terras assoladas, de cinza abatido, e me apoio em árvores nuas, carbonizadas da raiz até o topo. Meus pés queimam em labaredas criminosas, minha pele derrete no calor extremo que exala da clareira onde antes eu encontrava descanso. Passam bichos em chamas, em agonia, e morrem mais adiante. Pássaros caem do céu, chuvas artificiais desabam de helicópteros, mas são insuficientes. Pouco basta também a camiseta encharcada contra o foco, que é um só: ganância. O estúpido não pergunta, age sem pensar, mas o clima responde. Cercado por interesses espúrios e redemoinhos de fogo, sufoco meus passos pelas estradas em brasa e ouço, ao longe, o som de um piano, um lamento primal e melancólico.

Fujo da morte. Viajo através de conflitos sem fim, repito passos de um ser humano esmagado de desesperança. Sou terra prometida e não cumprida, território que se defende, tabuleiro de jogos de guerra à mercê dos dados e das estatísticas. Sou a mulher que não pode falar, o homem que não pode fazer o que nasceu para fazer, a criança que nada será. Na charneca suja de barro e sangue inocente, pilhas de corpos e tijolos viram fotografias premiadas, crônicas efusivas e reportagens inúteis. E conspiram os homens torpes em seus tronos de ouro, distantes da dor, alheios ao sofrimento que se espalha, que se cansa, e migra. Sob uma garoa suja e acinzentada, sob tiroteios e explosões, meus ouvidos lesados sentem a vibração fraca das notas que soam abafadas. O piano faz fundo e ainda toca, insistente.

Fujo nem sei mais do quê. Prosseguir é árduo e a morte já parece convidativa. Tropeço, enojado, em feixes de vil ignorância espalhados por um mundo que desconheço. Deles escorrem o chorume de um extremismo podre, excremento ácido e venenoso que corrompe cérebros de toda forma e tamanho, câncer que se embrenha e prolifera, primeiro silencioso, depois aos gritos. Como metástases, mentiras primárias se espalham e infectam outras células com sua intolerância e preconceito mascarados de ideologia. Mas é só ódio, impuro, incurável. Das ruas vem o barulho de multidões furiosas, num embate insano entre mitos e realidades. Não há bom senso, nem limite. Então a música do piano se impõe, num crescendo.

Perdido nas profundezas de um desânimo opaco, entrego-me à companhia das sombras. O som é dilacerante, rasga meu silêncio com cifras densas carregadas de impaciência. Pálidas, escuras, cúmplices, as teclas de marfim se movimentam numa melodia lúgubre. Uma delas, emperrada num tempo que não existe mais, emite a derradeira nota. Acordo. O réquiem chega ao fim.

Não fujo. Não quero, não posso. Do sofá onde me entreguei, mal vejo o piano velho, no canto. É noite de brisa. Fecho os olhos. Quem sabe assim consiga sonhar, ao menos por alguns minutos.


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