11 Carla Penz

Onde andará Amália?

Sentada na cadeira de balanço no jardim, a mulher observa as borboletas voejando, saltitantes, sobre as flores da buganvília. A trepadeira rósea se estende, exuberante, fugindo por sobre o muro.

No seu colo, o álbum de fotografias – registro de momentos vividos, lembranças, rostos sérios e outros alegres, instantes capturados para resistir ao tempo. Olha com atenção, a fotografia do homem fardado e com máscara de gás, que segura a menina de cabelos loiros e cacheados, com olhos chorosos. Quem será aquele militar? A máscara esconde o rosto e o olhar. E a menina, tem um ar de abandono e desproteção. Quem será ela? Melhor esquecer. Fecha o álbum. Coloca-o numa cadeira ao lado, substituído pela boneca-bebê, que agora segura com gentileza e cuidado maternal.

Que horas seriam? Quem sabe já é hora de dar mamadeira para a criança. Percebe que está sem o relógio. Faz tempo, que a sua solidão não tem compromissos, talvez por isso não precisa saber da passagem dos minutos, dos dias.

As vivências têm sido como um quadro, onde escreve a giz e apaga. Escreve e apaga. A existência, as ocorrências cotidianas, os fatos felizes ou difíceis resistem a ficarem gravados.

— Onde foi que colocaram meu relógio? Fala consigo mesma. Tenta lembrar se esqueceu na pia da cozinha ou no banheiro.  Irritada, procura no bolso do vestido. Nem sinal. Preocupada com a bebê, que não foi alimentada, enche a boneca de beijos, tentando acalmá-la. Lá vinha aquela moça toda de branco. Ia querer saber do relógio.

— Dona Amália, não está com calor? Podemos tirar o casaquinho?

— Quem é você?

—Eu sou Inês, sua amiga-acompanhante. A senhora não lembra?

— Lembra disso, lembra daquilo, lembra dele… não aguento mais. Por que querem que eu lembre de tudo? E cadê o meu relógio? Tá na hora de dar a mamadeira para a criança.

— Depois vou procurá-lo para a senhora. Não se preocupe, a bebê não está com fome — fala Inês, calmamente.

Amália suspira conformada, embalando a boneca.

— A senhora, não quer ler um livro? Deixei um livro bem bacana aí na mesinha.

— Não gosto de ler!

Lembrava, vagamente, que alguém numa sala branca e impessoal havia recomendado a leitura, palavras cruzadas, caminhadas, música. Parecia até uma receita. Agora, já não gostava de ler. Às vezes, não entendia as coisas, as palavras, a estória. Tinha muitos livros espalhados pela casa, comprados nas viagens, nas inúmeras livrarias que visitara. Na ativa, sua vida se resumia a trabalho, reuniões, prazos, problemas a resolver. Gostaria de ter lido mais. Muitas obras jaziam na fila de espera.

Caminhadas, não a deixavam sair sozinha. Temiam que não voltasse.

Ouvir música clássica ainda lhe garantia algum prazer. Fechar os olhos e mergulhar no passado. Sempre o passado tão presente. E este, tão ausente, anuviado. Na cabeça cinza, vicejam esquecimentos incômodos, indesejados, inquietantes. E ao dar-se conta disso, aumenta o nervosismo.

—Quero ir pra casa. Me leva pra casa?

— Mas, a senhora está em casa, dona Amália.

— Amália…quem é Amália? Não. Não estou em casa. Quero ir embora daqui. Não gosto daqui —responde agitada.

— Então, vamos.

Inês pega-a pela mão e a conduz como a uma moleca teimosa e reclamona. Saem pelo portão pintado de branco. Caminham pela rua, conversam, param para olhar os jardins vizinhos. Ao chegar ao fim da quadra, retornam e adentram novamente pelo portão branco.

Amália volta a ocupar a cadeira de balanço, com um riso gentil, suave e desmemoriado. Pega de novo o álbum de fotos e detém-se naquela em que o homem fardado e com máscara de gás segura a garotinha loira… Fecha os olhos. Onde andará Amália?



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